terça-feira, 24 de março de 2009

Primordial

Quando eu for criança
e o futuro enfim dormir no meu colo,
não buscarei redimir o passado
ou alentar a filha de Pandora.

Qualquer ânsia será inútil
e o espírito não conhecerá revolta.
Aceitarei o que me for ofertado
sem jamais me inebriar
ou lançar-me nos braços de Hypnos.

De bom grado me farei leviano,
amante de deuses efêmeros:
tulipas, cigarras e dança.
Incólume, a flauta sempre à mão,
desprezarei as horas sérias
cuspindo nos olhos de Chronos.

Antes, muito antes da conflagração dos séculos,
o tempo plenamente restaurado,
a eternidade habitará meu corpo,
mapa de todos os encontros,
morada ctônica de Sige e Eros.

Quando eu for criança,
e só quando for criança,
junto a meu ouro e prata porei à parte o butim de minhas guerras
e a sede oculta pelo espólio de meus inimigos.
Os mortos, todos, haverão de permanecer sepultos,
inumados em inaudita paz,
assim como o vão desejo pelo canto de Homero.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Boletim do Sertão

“Quadrante que assim viemos, por esses lugares, que o nome não se soubesse. Até, até. A estrada de todos os cotovelos. Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”

Vim. É de Petrolina que enfim componho esta mensagem para contar as novas. É mesmo só para dizer como vão as coisas, passar os novos contatos, fazer os já feitos convites para uma visita.

Pernambucando há aproximadamente dois meses, apenas agora reúno condições para começar a (tentar) me sentir em casa e dar início à elaboração da mudança, esse ato de coragem – temeridade? Passados dias e dias, para mim bem longos, finalmente tenho colchão, guarda-roupa e internet! Para não falar dos parangolés naturebas que acabei encontrando numa esquina ou noutra. Mas ainda falta uma estante para os livros, os poucos que consegui trazer de beagá, e uma mesa pequena para apertar no quarto e me suster nos momentos em que preciso de recolhimento para escrever.

Assim que cheguei e até meados da terceira semana, fiquei hospedado na casa de uma prima, aquela que me falara do concurso, única pessoa da família até então desgarrada do sul-sudeste. Fui bem recebido e Al., também professora da federal, ajudou-me a tratar das questões burocráticas (exame admissional, apresentação dos documentos, posse e entrada em exercício) e iniciar a busca por um apartamento. A procura, porém, foi difícil: muitas opções ruins; poucas boas, mas caras. Ao menos neste primeiro momento, acabei desistindo de morar só e decidi compartilhar um apt com um professor da psicologia também recém-chegado. É um três quartos mediano, a vinte minutos a pé do campus de Petrolina e uns 25 do centro. Bairro tranqüilo, daqueles em que há pequenos comércios: mercearias, barbeiro, uma lavadeira/passadeira e restaurante-bar especializado em bode, com direito a espetinho de rim!, bairro daqueles em que as pessoas de noite colocam cadeiras no passeio para ficar conversando e ver o tempo passar.

(...)

O D., com quem divido o apt, é de Recife. Um cara bem animado, desses brincalhões. O chato é que acompanha a novela das oito e até big brother Brasil! Dá pra acreditar? Tomara que a tv continue com o som bem baixo para não termos um primeiro desgaste... Mas, como dizia, ele é de Recife e por isso aproveitei para ir pra lá no carnaval. E que carnaval! Não fosse a chuva, que provocou o cancelamento de alguns shows, como o do Antônio Nóbrega, o que mais queria ver, teria sido perfeito. Quero voltar no ano que vem. Quem anima? Fomos e voltamos de carro, encarando o sol do sertão e acompanhando visualmente a transição: sertão, agreste, zona da mata, litoral. No caminho daqui lá encontra-se Serra Talhada, a cidade de Lampião.

Por ora, essa morada no Caminho do Sol me basta, mas sei que ainda preciso aguardar o segundo semestre para realmente ter condições de avaliar onde será melhor me estabelecer. É que o curso de ciências sociais e o colegiado de sociais, no qual estarei lotado (na Univasf não há departamentos; os colegiados exercem dupla função), ficam em Juazeiro, já Bahia, do outro lado da ponte, o que significa que terei disciplinas a lecionar nas duas margens do São Francisco.

Existe a possibilidade, parece até que o interesse, por parte da universidade em montar novos cursos de humanas, dentre eles o de filosofia. Entretanto, sou o primeiro e por enquanto único filósofo da universidade e não consigo imaginar como conseguiria construir sozinho a proposta a ser encaminhada para o Ministério da Educação. Além disso, o que aliás é bem mais sério, não sei quanto tempo vou ficar aqui. Embora tenha acabado de chegar, acredito que posso tentar outro concurso em breve (sabendo de algo, avisem-me!) ou em cerca de oito, nove anos, isto é, depois do doutorado. Doutorado, aliás, ao qual devo dar início apenas daqui a quatro anos, quando poderei, segundo a legislação do estágio probatório, pedir o afastamento.

Mas, honestamente, tenho tentado não pensar nessas possibilidades futuras. Neste momento, já tenho coisas demais a resolver. E, afinal de contas, quem sabe não fincarei definitivamente meus pés por aqui? Depois de fazer novas amizades, será que a saudade ainda vai bater tão forte? Será que a dor não vai se atenuar?

“Minha vida tem meio-do-caminho?”

O chato por aqui, além da perda do convívio com pessoas queridas e agora distantes, é, primeiramente, a temperatura. O calor é inclemente. O sol assola sem dó: das sete às dezessete é sempre meio-dia! Em segundo lugar, a biblioteca da universidade, que é ínfima e não parece receber a devida atenção da reitoria e pró-reitorias. É claro que vai melhorar com o tempo, mas sei que parte de meu salário terá de ser dedicada a livros que, noutras circunstâncias, não compraria. Paciência. É chato também ser chamado de senhor pelos alunos e mesmo por pessoas mais velhas. Será que estou tão carrancudo assim?

Há coisas legais também, sobretudo para uma pessoa meio jeca como eu. Gosto das pessoas simples, da cidade tranqüila, das feiras de frutas e produtos da região, do ritmo mais lento, do sotaque, do rio, no qual já nadei, mas sem beber da água, com medo de que se concretize a lenda de que quem a bebe nunca mais sai de suas margens. Agrada-me também a possibilidade de estudar com calma, sem preocupação financeira, preparar-me com tranqüilidade para o doutorado e em especial a possibilidade de pensar-me, conhecer-me melhor. Estando aqui, isolado de muitas coisas e pessoas importantes, às vezes tenho dias de extrema nostalgia. Queria até voltar a fazer análise, mas parece que não há nenhum bom psicanalista fora do círculo universitário.

“O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enriquecidas com muita astúcia: um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação.”

As aulas começaram e estou com três turmas. Uma é de Filosofia para Administração; outra, de Bases Filosóficas da Psicologia; a terceira, por mim sugerida, aborda Hipócrates e a Medicina Antiga. As duas obrigatórias estão cheias como de praxe; a eletiva tem 33 inscritos que simpatizaram com minha proposta. Tudo caminha bem, com os inevitáveis percalços de um professor calouro.

Outro dia, acompanhei um grupo de maracatu que está sendo formado na cidade. Brinquei um pouco com o agogô, mas depois apenas compus a roda. Colocamos o bloco na rua, nos dirigimos para uma pracinha e um monte de gente começou a chegar, inclusive alunos da universidade. Para minha surpresa, uma dupla de estudantes da psicologia, os únicos de meus alunos que reconheci no batuque, vieram até mim pedir que tirasse uma foto com eles. Havíamos tido apenas uma semana de aula, mas queriam guardar uma foto do professor. “É que nunca tivemos filosofia com um filósofo!”

No mais, o mais. Continuo com a leitura-releitura do Grande Sertão: Veredas, que foi minha preparação para a vinda. Curiosamente, não vi buriti por aqui e, pelo que perguntei, ninguém conhece. Sabem de carnaúba. Mas há uma camelô no centro que vende uma caixinha de doce de buriti vindo do interior do Piauí! O Piauí, para quem não sabe, está bem próximo: Petrolina fica na ponta de Pernambuco – próxima da Serra da Capivara, que quero visitar assim que puder. Lençóis, na Chapada Diamantina, também não está distante...

(...)

Saudades.
Forte abraço,
Fl.

"Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver não é muito perigoso?" JGR-Riobaldo

terça-feira, 10 de março de 2009

Peteleco em Deus

“Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo... Quando ele gargalhou pela segunda vez, tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ri tanto que chora e de suas lágrimas nasce a alma.” (Papiro de Leyde, século III)
Um antigo amigo sempre me dizia que dispensava o bom humor e a benevolência de Deus, supondo que, de lá de cima, o que quer que caia chega sempre tão rápido e com tamanho peso que só pode causar estrago. É um raciocínio intuitivo, não se pode negar... O grande estrago, porém, o estrago irreversível, já está feito: a Criação está aí pra quem quiser conferir. Com um sorriso certamente malandro e um meteoro que nos arrancou a lua, a Terra aqui foi posta e sobre ela eis que pisamos. Não se sabe bem por que cargas d’água, certo é que o mundo existe e que nossos olhos, se não se enganam ou são enganados, vêem-no como coisa bem dura e real. Tratemos de não pedir mais nada aos céus, dizia meu velho amigo, além da chuva para o jardim: o que temos, por favor, há de bastar. Pra que correr o risco de ganhar um novo satélite e perder outra parte de nós? Não façamos também nenhuma gracinha e nem arrisquemos uma anedota divina. Como os planetas transladam em eterno ritmo, como com eles giramos nós e rolam outras lágrimas (as nossas), não provoquemos novos estragos, não criemos ensejo para o gracejo: agora, com motivo pra rir, Deus pode gargalhar ainda mais forte e tornar a alma imortal.