terça-feira, 12 de maio de 2009

Decantar, eu decanto

pra Rafita e pro Diogo, únicos
também pra Nana, linda
et pour Marie, rêve irréalisable

À medida que envelheço, julgo que sou posto frente a novos sentimentos, virtudes e vícios. Lembro-me, por exemplo, de quando conheci a coragem. Ainda era jovem, embora não faça assim tanto tempo, e vi-me frente a um dilema que me obrigou a fazer uma difícil escolha. Tratava-se de opção profissional, que naquele momento assumia a forma de uma alternativa entre duas graduações. Como uma ironia da vida, a perda de um amigo muito próximo, motociclista morto com uma linha de cerol que quase o decapitou, ajudou-me a decidir. Pensei que, também de modo repentino, meus dias poderiam chegar ao fim e calou fundo a dor de construir uma vida pouco genuína, mesmo que dita segura. Imaginava-me moribundo a lamentar tudo que gostaria de ter feito e, por medo, deixara de lado. Tive a clara convicção: a despeito de todos os riscos, era preciso tomar o caminho mais difícil, o caminho que se apresentava como sendo o meu, e para tanto havia que ter coragem.

Mais tarde, tive de ater-me com outros sentimentos, como ódio, inveja e agradecimento, que brotaram em mim como fruto de novas experiências e reflexões. Acontece que com o passar dos anos não apenas clarificam-se os estados de nosso ânimo, a força ou fraqueza de nosso espírito, mas cristalizam-se as vivências mais marcantes, aquelas que fulguram na memória e insistem em ressoar no peito. Com freqüência têm caráter extremo: morte, amor, separação. Entretanto, podem ser marcantes simplesmente pela beleza e gratuidade, em nada menos radicais que o luto, a entrega ou a ruptura. É o caso de pequenos atos, como uma mão estendida, um convite inesperado, um olhar silencioso. Contudo, também é o caso dos encontros fortuitos que se consolidam em amizades e perpetuam-se no tempo, sobrevivendo à distância e sobrepujando ausências. Simultaneamente leves e consistentes, trazem em si o selo do sublime.

Ressalto a beleza desses encontros, fugazes e memoráveis, inexplicáveis como o acaso, cuja espontaneidade é desconcertante. Graças a qual encantamento entrelaçam-se pessoas desconhecidas em laços fraternais? Por quais secretos motivos a afeição que de tais laços emerge consegue atravessar longas latências mantendo vivo o desejo do reencontro, inevitavelmente efêmero e talvez impossível? Onde está a raiz dessa ligação, do vínculo imune ao oblívio? Por que será que não fenece? Que singular ferida é essa, que, sem deixar cicatriz, mantém-se à flor da pele? Há nome para amizade dessa estirpe?

Tais encontros nascem como que do nada e, quando nos damos conta, já são adamantinos. Duram um átimo, voláteis que são, mas impõem-se como um monumento. Podem surgir num veraneio, numa visitação a museu ou biblioteca, sabe-se lá onde mais. Certo é terem um calor intrínseco que impede de extinguir-se a flama do afeto. É algo impremeditado, inverossímil e, no entanto, real. O anseio é de que se repitam, mas inexiste exatidão quanto ao momento em que isso acontecerá, se é que acontecerá. É incalculável o dia em que as rotas se cruzarão novamente.

Passados meses de absoluto afastamento e silêncio, às vezes mais de ano, o reencontro, quando se dá, reluz – extáticos, olhamo-nos nos olhos, medram as lembranças e o desejo de novas vivências; imersos em renitente saudade, ainda somos íntimos e estamos à vontade como se na véspera estivéssemos juntos. Magicamente, revoga-se a intermitência, unem-se passado e presente e instaura-se um tempo de exceção, que em breve será rompido por nova despedida e permanecerá tão almejado quanto nunca.

Dentre os sentimentos que os anos me proporcionaram, eis um para o qual ainda não encontrei expressão propícia, a não ser admitir que, quando a morte bater à minha porta, talvez repentinamente, não terei o direito de maldizer a vida, sabedor que sou de que esses raros encontros, insignes como são, justificam uma existência; quando se cumprir minha hora, aceitarei de bom grado e sem aventar relutância, como quem consente em descer a montanha após ter logrado alcançar o cume.

6 comentários:

  1. De fato, os sentimentos vão ficando mais nitídos, até mais compreensíveis, com o passar dos anos(não que eu diga isso com muita propriedade, mas a pouca que tenho me basta), eu só não tenho certeza de que isso seja tão bom.Que seja.
    É mesmo difícil entender de onde surge essa ligação que atravessa tempo e espaço como se eles não existissem.Alguém que acredite piamente em vidas passadas e essas coisas talvez fale disso com um pouco mais de convicção, eu só posso dizer que, apesar de muitas vezes ser ininteligível, resta adorar esses momentos que parecem conter todas as cores que possa ou não lembrar a nossa memória.
    Enfim, qualquer coisa que eu escreva a mais vai soar como puxa-saquismo, então, no semestre que vem a gente conversa, Marcelo(hahaha).

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  2. Centauro,talvez depois de atravessar o nevoeiro, duas rotas se cruzem para instaurar "um momento novo, vento devastando como um sonho sobre a destruição de tudo...sonhar com você, jaz nos espirituais sinais iniciais desta canção"
    Armadura de vento tem o efeito de uma pá de carvão que me salva de me perder além das montanhas geladas. Aquece,acende,assombra.
    Obrigado.

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  3. Olá, Centauro, li seu primeiro texto sobre a aprendizagem da coragem,do agradecimento, da inveja, do amor, da amizade. Me identiquei muito no caso da profissão, precisei de muita coragem para aos 17 anos escolher a mesma profissão que vc. escolheu e eu tinha justamente uma outra opção aparentemente muito mais segura. quantos aos encontros e desencontros da vida, ah, a vida de nômade proporciona tanta coisa, há tanta gente em tantos lugares do mundo com quem nos reencotramos vez por outra e reunimos as memórias, a dispersão, o tempo que passou como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vivo com muitas pessoas acesas em mim, algumas não vejo há anos, Agradeço seu texto que me faz refletir também sobre mim. Aos poucos tentarei ser internauta, estou começando a fazer uma nova experiência, mas sei que ainda vai demorar, por exemplo, para acessar a rede todos os dias. De qualquer forma, seu convite está sendo um estímulo. Espero que me reconheça nesse texto. Tudo de bom!

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  4. "Seja intenso.
    Vá ao fundo do poço.
    Corra todos os riscos.
    Abra mão da vida. Descarte qualquer valor.
    Mergulhe fundo.
    Morra sempre.
    Dilacere-se. Detone-se.
    Arrisque a todo custo.
    Queime a última ponta.
    Mate que te ama. Destrua.
    Destrua.
    Destrua.
    Odeie seus amigos.
    Abandone o mundo. Destrua tudo.
    Seja Feliz. Coragem.
    E jamais deixe de recriar."
    (14/11/2001)

    Lembra-se disso? Lembrei-me quando li esse 'post'...

    Abraço,


    RB

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  5. olá Centauro,

    eu andava adormecido no íntimo de alguém que escolheu a mesma profissão que você! E diante de situações parecidas!

    Era como que a escolha por ser amigo do sabedoria emergisse dele com tanta ânsia que não pudesse suportar e sufocar o que lhe emergia como uma verdade a ser vivida!

    Também não queria reduzir a vida a lamentações e resmungos! Mas o mundo lhe pesa sobre os ombros! e ainda tem uma vida marcada pelas dificuldades, no passado e não menos no presente; e futuro não chega a cogitar!

    Dias de profunda introspecção me trouxeram a baila! e esse seu decantamento destilou-me em aguardente.Vim de volta à luz dos dias dos dilemas do espírito que me gerou. Lhe farei outras visitas!

    Bernardo Reis!

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  6. Belíssimo texto estampado em meu quarto e desfrutado em cada anoitecer, como uma obra de arte.
    Pena não desfrutar a sua presença sempre ao nosso lado.
    Saudades de você, amigo querido!
    Rafita.

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