quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Motivo para o Rubor, Razão para Sorrir

Nota.
B., permaneço espantado e contente com suas palavras. Muito obrigado por tê-las formulado e trago à luz, mesmo tendo se passado cerca de três meses desde o final do semestre. Confesso que elas me tocaram profundamente. Obrigado também por ter permitido a reprodução da postagem originalmente publicada no Insistência Insone. Como vários amigos e amigas acompanham o Armadura de Vento, aprouve-me, sem maiores intervenções de minha parte e em que pese a timidez, compartilhar essa alegria, esse motivo para o rubor, essa razão para sorrir.

QUARTA-FEIRA, 19 DE AGOSTO DE 2009
"Ousadias de fim de semestre".
Querido professor, lhe trago esta maçã mais como uma oferta de Lilith que como um agrado. A maior parte das coisas que você lerá nas próximas linhas em nada lhe acrescentará, mas, ainda assim, elas esperaram o semestre inteiro para sair de mim. Digo-as apenas aqui, covardemente escondida por trás das teclas que impedem que fiquemos os dois ruborizados e fugitivos cara-a-cara (ficaremos, inevitavelmente, mas sem precisar assumir um para o outro, então). Há um tipo de brilho em seus olhos que poucas vezes vi noutros (se é que já vi), é um misto de sagacidade e meninice com mais alguma coisa indefinida que faz com que pareçam desmontar constelações inteiras num breve piscar. São olhos de alma. Não, não olhos 'da alma', olhos DE alma. Tem pessoas que quando nos olham parecem estar absolutamente ocas, como se nada do que viveram houvesse ocupado qualquer espaço em seu olhar, você não. Você tem olhos tão cheios, tão cheios, que a alma inteira parece ter se depositado naquele ponto de luz que eles emitem enquanto você divaga sobre umas boas ironias filosóficas. Há também, sem nenhum respeito, um tanto de erotismo neles. Por que? Onde? Como? Eu não sei de onde vem, mas que há, -pelos céus!- há, e é mais do que o suficiente e o saudável para nós, pobres mortais que o cercamos.
Sem falar no quê de teatralidade, que me diverte e prende, em seus movimentos. E no distanciamento ético que faz com que todos esses meus pensamentos soem meio ridículos e fora de contexto. Além disso tudo, para fazer par com os olhos, o sorriso às vezes o faz parecer um menino travesso que acaba de aprontar uma armadilha e só está esperando que alguém caia nela. Tem as mãos bonitas também, muito, muito brancas, e sandálias de couro (*-*).
Mas, apesar de todos os atributos encantadores acima citados, tem uma coisa que chama ainda mais atenção e eu juro que não vou falar do sotaque (hahaha). É a aura de paixão que o encobre quando se perde em uma linha de raciocínio sem perceber que carrega uma sala inteira junto.
Então, senhor Marcelo, perdoe-me a ousadia, mas tu, com tuas viagens, foste um dos meus poucos motivos para acordar sorrindo às quartas e sextas por um semestre inteiro.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Palco e o Peito

pra T. Lides
Tenho uma tia melodramática. Ela sempre morou longe, afastada de meus olhos e do núcleo familiar. E sempre se entristeceu por isso. Ainda criança, lembro-me de irmos visitá-la e sermos recebidos com choro compulsivo. Tão marcante! Parecia até que chegávamos para enterro ou visita a moribundo. Nunca soube se era o enlevo do reencontro. Devia ser a dor da saudade. Também não me esqueço de sua pizza massuda feita na chácara de águas límpidas e das brincadeiras forçadas que encabulavam seus filhos. O bunda-lê-lê de calcinha, como era engraçado! Pela bundona ou pelo inusitado? Àquela época, já era senhora, mãe de meus primos, um em plena adolescência. Mesmo assim, comia escondida doces na cozinha para não ser lembrada do regime. Certa vez, ela se regalou empurrando-me a culpa por um arroto altíssimo que deixou escapar na lanchonete. Quem pode com ela, com minha tia e com a alegria?
A felicidade assume formas inusitadas: é curioso como não sabemos ser felizes. Será que é de tanto ser triste? Voltamos à meninice, revisitamos comportamentos infantis: é pulo, é pum, é lutinha, é bunda-lê-lê, é bobajada, são os risos sem razão. Desconfio que a alegria não caiba numa alma adulta. Para acolhê-la no peito, há que ser velho ou criança. Ser maduro ou ainda ingênuo. E minha tia era só adulta, aliás, bem adulta, mãe de casal, esposa, professora, dona-de-casa, devota de Santa Rita de Cássia e desamparada, como agora sou. Mulher de trabalho, sofrimento e beleza. Das que choram de dor em silêncio e se debulham em pranto na alegria.
Graças a seu exemplo, aceitei algumas contradições do humano. Hoje, peço-lhe sugestões acerca da docência e acabo recebendo conselhos sobre o amor. Quando posso, escuto suas histórias sobre a vida talhada na distância e no calor interiorano, essa sina que também se fez minha. Nos meus caminhos quotidianos, protejo-me do sol que outrora a castigava, topo com os mesmos sapos amarronzados que a enojavam. Creio padecer de dores semelhantes. Com ela, aprendi a ver lágrimas e não conter o choro. Sou simples e sentimental, intimido-me quando estou entre estranhos, emociono-me demasiado em chegadas e despedidas. Só não faço arrotar! Muito de seu espírito se encarnou em mim. Tenho uma tia que amo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Adélia Prado - Poesia e Humanização



pra Alline, irmã

Apenas muito tardiamente a literatura entrou em minha vida. Tinha 18 anos, passara há pouco no vestibular e me inquietava com minha ignorância. Pensava que um universitário e futuro administrador de empresas não podia ser tão inculto como eu era e impus-me a leitura de algumas obras, de cujo conteúdo não me restou uma gota, lidas como foram por puro constrangimento, mais como exercício da memória que do espírito.

Felizmente, porém, naquele mesmo período em que me abria à leitura, coisa até então odiada, topei com uma obra que descortinou o valor e o prazer da literatura: Cacos para um Vitral de Adélia Prado. Como nunca antes, senti que a leitura poderia iluminar minha própria vida, permitindo-me compreender melhor a mim e o mundo. Tocado pela beleza daquela prosa poética, sofri uma conversão que, só agora percebo, eu sempre desejara. Não tardou para que eu abandonasse a graduação que iniciaria e partisse para as humanidades a fim de trilhar um outro curso profissional e existencial. Inevitavelmente, caíra por terra o imperativo exterior que me constrangia à formação de uma pátina de cultura, dando lugar a um móbile íntimo e genuíno.

É impossível dimensionar o quanto a leitura modificou-me, pois, a rigor, deveria falar em renascimento, não em modificação. Contudo, na ausência de termos precisos, permito-me dizer que penetrei num novo universo a partir do qual a antiga vida mostrou-se insignificante, dado que menos bela e desafiadora. Descobri o quanto andamos cegos, olhos cheios de escaras. Não enxergamos a poesia, a beleza feliz e triste, que perpassa o dia-a-dia. À Adélia Prado devo essa e muitas outras descobertas. Devo-lhe ainda um entusiasmo que vez por outra se apossa de mim, vivo como uma flama, irrupção da verdade fundamental que a poeta encarna: a poesia está no cotidiano – porque no cotidiano está o divino.

PS: O vídeo da Adélia pode ser visto ou baixado no site do "Sempre um Papo".

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Atentada Tradução III: Michel de Montaigne

I.53: D’un mot de Cesar
[A] Si nous nous amusions [occupions] par fois à nous considerer, et le temps que nous mettons à contreroller [contrôler] autruy et à connoistre les choses qui sont hors de nous, que nous l'emploissions à nous sonder nous mesmes, nous sentirions aisément combien toute cette nostre contexture [ce composé que nous sommes] est bastie de pieces foibles et defaillantes [imparfaites]. N'est-ce pas un singulier tesmoignage d'imperfection, ne pouvoir r'assoir [asseoir, établir] nostre contentement en aucune chose, et que, par desir mesme et imagination, il soit hors de nostre puissance de choisir ce qu'il nous faut? Dequoy porte bon tesmoignage cette grande dispute [discussion] qui a tousjours esté entre les Philosophes pour trouver le souverain bien de l'homme, et qui dure encores et durera eternellement, sans resolution [solution] et sans accord:

[B] dum abest quod avemus, id exuperare videtur
Caetera; post aliud cùm contigit illud avemus,
Et sitis aequa tenet.
[Tant qu’il nous échappe, l’objet de notre désir nous paraît toujours préférable à toutes choses ; venons-nous à en jouir, un autre désir nous naît, et notre soif toujours est égale. (Lucr., III, 1095)]

[A] Quoy que ce soit qui tombe en nostre connoissance et jouïssance, nous sentons qu'il ne nous satisfaict pas, et allons beant apres les choses advenir et inconnues, d'autant que les presentes ne nous soulent [rassasient] point: non pas, à mon advis, qu'elles n'ayent assez dequoy nous souler, mais c'est que nous les saisissons d'une prise malade et desreglée,

[B] Nam, cùm vidit hic, ad usum quae flagitat usus,
Omnia jam ferme mortalibus esse parata,
Divitiis homines et honore et laude potentes
Affluere, atque bona natorum excellere fama,
Nec minus esse domi cuiquam tamen anxia corda,
Atque animum infestis cogi servire querelis:
Intellexit ibi vitium vas efficere ipsum,
Omniaque illius vitio corrumpier intus,
Quae collata foris et commoda quaeque venirent.
[Car il vit que les mortels ont à leur disposition à peu près tout ce qui est nécessaire à la vie ; il vit des hommes gorgées de richesses, d’honneurs et de réputation, fiers de la bonne renommée de leurs enfants ; et pourtant il n’en était pas un qui, dans son for intérieur, ne fût bourrelé d’angoisse, et dont le cœur ne fût oppressé de plaintes douloureuses : il comprit alors que le défaut venait du vase lui-même, et que ce défaut corrompait à l’intérieur tout ce qui du dehors on y introduisait de bon. (Lucr., VI, 9)]

[A] Nostre appetit est irresolu [indécis, indéterminé] et incertain: il ne sçait rien tenir, ny rien jouyr de bonne façon. L'homme, estimant que ce soit le vice [défaut] de ces choses, se remplit et se paist d'autres choses qu'il ne sçait point et qu'il ne cognoit point, où il applique ses desirs et ses esperances, les prend en honneur et reverence: comme dict Caesar, « communi fit vitio naturae ut invisis, latitantibus atque incognitis rebus magis confidamus, vehementiusque exterreamur. » [Il se fait, par un vice ordinaire de nature, que nous ayons et plus de fiance, et plus de crainte des choses que nous n’avons pas veu, et qui sont cachées et inconnues. (Traduction que donne Montaigne dans les éditions de 1580 et de 1588, César, De bello civili, II, iv.)]

I.53: De uma frase de César

[A] Se às vezes nos ocupássemos em nos observar e se empregássemos a sondar a nós mesmos o tempo que dispensamos a controlar os outros e a conhecer as coisas que estão fora de nós, sentiríamos facilmente como toda esta contextura [este composto de que somos formados] é construída de peças frágeis e falhas. Não é um singular testemunho de imperfeição não poder assentar nosso contentamento em coisa alguma e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora de nosso poder escolher o que nos é preciso? Disso oferece um bom testemunho a grande disputa que sempre houve entre os filósofos para encontrar o soberano bem do homem e que ainda dura e durará eternamente, sem resolução e sem acordo:

[B] dum abest quod avemus, id exuperare videtur
Caetera; post aliud cùm contigit illud avemus,
Et sitis aequa tenet.
[Enquanto nos escapa, o objeto de nosso desejo nos parece sempre preferível a todas as coisas. Quando dele fruímos, nasce em nós um outro desejo e nossa sede é sempre igual. (Lucrécio Da Natureza das Coisas III.1095)]

[A] O que quer que caia em nosso conhecimento e fruição, nós sentimos que não nos satisfaz e vamos boquiabertos atrás das coisas futuras e desconhecidas, já que as presentes não nos satisfazem: não, assim vejo, que não tenham o bastante para nos satisfazer, mas é que as pegamos com uma mão doente e desregrada,

[B] Nam, cùm vidit hic, ad usum quae flagitat usus,
Omnia jam ferme mortalibus esse parata,
Divitiis homines et honore et laude potentes
Affluere, atque bona natorum excellere fama,
Nec minus esse domi cuiquam tamen anxia corda,
Atque animum infestis cogi servire querelis:
Intellexit ibi vitium vas efficere ipsum,
Omniaque illius vitio corrumpier intus,
Quae collata foris et commoda quaeque venirent.
[Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição quase tudo que é necessário à vida; viu homens empanturrados de riquezas, de honras e de reputação, orgulhosos do bom renome de seus filhos e, contudo, não havia um que, em seu foro interior, não estivesse atormentado de angústia e cujo coração não fosse oprimido por queixas dolorosas. Ele compreendeu então que o defeito vinha do próprio vaso e que esse defeito corrompia pelo interior tudo que de fora lhe era introduzido de bom. (Lucrécio Da Natureza das Coisas VI.9)]

[A] Nosso espírito é irresoluto e incerto: ele não sabe nada reter nem nada fruir adequadamente. O homem, pensando que se tratasse de falha nas coisas, encheu-se e nutriu-se de outras coisas que ele não sabe e que não conhece, nas quais imprime seus desejos e suas esperanças, tomando-as com honra e reverência. Como diz César, “communi fit vitio naturae ut invisis, latitantibus atque incognitis rebus magis confidamus, vehementiusque exterreamur.” [Acontece, por um vício ordinário da natureza, que tenhamos mais confiança e mais medo das coisas que não vimos e que estão ocultas e desconhecidas. (César De bello civili II.iv – tradução feita por Montaigne nas edições d’Os Ensaios de 1580 e de 1588.)]

sábado, 1 de agosto de 2009

Potó

pro Angelocópi, o ateu
Tenho um amigo, um pouco chegado à entomologia, que brinca dizendo que, se Deus existe, ama insetos mais do que tudo. Pois é inegável: há tantos e tão variados que é impossível nos furtarmos à conclusão de que são eles, e não nós, os preferidos do Criador.

Grandinhos, médios, pequenos, minúsculos; nojentos, curiosos, coloridos; voadores, terrestres, aquáticos; silenciosos, sorrateiros, barulhentos, estridentes; fedidos e inodoros; lentos, rápidos, intrépidos; inofensivos, chatos, ameaçadores – longevos, adaptáveis e incrivelmente diversos, que outro grupo do reino animal foi criado com tamanho esmero?

Há alguns meses, tive a oportunidade de tomar conhecimento de um dos constituintes desse verdadeiro universo: o potó. Na ocasião, uma amiga apontou-o como causa de umas bolhas que lhe apareceram na perna. Surpreso com a magnitude do estrago, pedi que o descrevesse, dado que nunca ouvira falar daquele bicho. Achei o relato estranho porque o inseto, dito terrível, seria diminuto. Deve ser troça, pensei. Chegando em casa, recorri ao Aurélio para orientar-me e descobri que era verdade, mesmo não obtendo uma confirmação de seu tamanho.

Potó [Do tupi.] Substantivo masculino. 1. Bras. Amaz. Zool. Inseto coleóptero, estafilinídeo, gênero Paederus, cuja secreção, de propriedades cáusticas e vesicantes, produz lesões na pele, como eritema, prurido, vesiculação e ulceração, às vezes extensas e numerosas, rebeldes ao tratamento. [Sin.: potó-pimenta, pimenta, papa-pimenta, burrico, trepa-moleque.]

A descrição é técnica, mas podemos inferir o fundamental. Só faltou dizer quanto tempo as lesões levam para melhorar. Nada posso garantir, mas ouvi dizer que, dependendo da extensão e da localização, pode custar até três meses. Por experiência própria, já que acabei por não escapar de uma sorrateira investida, atesto que minha queimadura, surgida ao esmagar um na nuca enxugando-me após o banho, levou quase dois meses para desaparecer. E como ardia!

Tal qual a imagem deixa entrever, o potó mede cerca de dois centímetros, se é que chega a tanto. Seu estrago é imenso e inversamente proporcional ao tamanho. Uma verdadeira desmesura: por que tanto poder para animal tão insignificante? Arrisco-me a dizer que Deus errou feio ao criar os insetos e especialmente, ainda mais do que a barata e o barbeiro, o potó. Deus, contudo, não deve ser culpado desse erro terrível, pois tem uma boa desculpa: a de não existir.

PS: Ou, quem sabe, a de atazanar os descrentes.