sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Perdoando os Pais

Quanto mais investigo-me, mais me dou conta do quanto trago em mim da criança que fui. Vivo meus dias com a maturidade possível, mas, quando surge o menino, abro os braços e acolho-o. Como compreender-me se recusar escutá-lo? Não anseio pelo amadurecimento completo. Anseio vão, adúltero. Não acredito que envelhecer signifique vencer a infância. Ninguém jamais depurou o passado. Estou com Drummond: “de tudo fica um pouco”.

Pergunto-me se podemos esgotar a infância, se é possível nos tornarmos plenamente adultos. É esse, aliás, o nosso desejo? O que é envelhecer? Qual a finalidade dessa metamorfose a que tempo nos obriga? Além da morte, confronto eterno e próximo, o que a madureza nos impõe?

Desilusões, arrisco-me a responder. Boas e más, grandes e pequenas, incontáveis desilusões. Para servir de exemplo, tomemos apenas uma, talvez a mais pueril, certamente a mais radical: a idealização dos pais. Na infância, imaginamos que são infalíveis, não temos olhos para suas imperfeições, as quais mais cedo ou mais tarde passamos a enxergar, muitas vezes de modo implacável. Reconhecer a finitude de nossa mãe, de nosso pai, eis o desencanto fundamental.

Difícil é admitir que reconhecer-lhes a humanidade não faz com que esqueçamos tudo que supostamente nos teria faltado, não alivia a memória dolorosa das falhas cometidas. O desencanto, lamentavelmente, é incapaz de apagar as cicatrizes. No entanto, ao pensá-los como realmente são, um homem e uma mulher, atingimos o patamar necessário para reavaliar fatos e fantasias. Quem sabe assim, amadurecidos, nos faremos capazes de perdoá-los, quem sabe assim nos permitiremos eximi-los da culpa que insistimos em lhes atribuir, como se ainda fôssemos crianças.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Dos Mapas e Esculturas

pro Artur, Papito
Já se perdeu no passado o momento em que comecei a registrar meus dias por escrito. Lembro que, no princípio, realizava descrições factuais, como se tentasse arquivar as tarefas que fiz, as pessoas que vi, os lugares em que pisei. À medida que o tempo passou, os fatos, se é que posso chamá-los assim, gradativamente perderam importância. Tornou-se mais valoroso pôr sobre o papel sentimentos, impressões, pensamentos. As vivências interiores, sem que eu percebesse, assumiram o primeiro plano na compreensão que tento ter de mim.

Em todos esses anos, e lá se vão muitos, com raras exceções voltei aos antigos cadernos. Quando o fiz, buscava um poema esquecido ou outra ninharia qualquer, pois a curiosidade nunca foi forte o suficiente para me fazer repassar as centenas de páginas manuscritas guardadas no alto do armário. Sei que elas jamais me servirão para exaurir os detalhes das trilhas psíquicas que percorri, mas suspeito que podem me fornecer boas pistas daquilo que outrora senti e pensei, daquilo que fui e talvez não seja mais. Creio deter uma cartografia íntima.

O verdadeiro sentido da introspecção, porém, não é acumular conteúdos para biografia, assegurar dados para uma futura expedição. Ao inventariar as experiências, quero antes entender-me e fazer-me o melhor que posso. O esforço de auto-compreensão nada mais é que uma contínua composição do próprio eu. Escrevendo, busco talhar e elaborar a matéria de que sou constituído com o ímpeto de quem esculpe a si mesmo, obra sempre inacabada. A palavra é o cinzel com que trabalho a página em branco, mais dura que a rocha.