quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Citação III: Almuhassin Attanúkhi

pro Geórgias de Betinera
VIZIR AUSTERO E JUIZ LIGEIRO
O vizir Ali bin ‘Iça era austero e rigoroso, e gostava de demonstrar sua superioridade nesses quesitos sobre todos os demais. Certo dia, foi entrevistar-se com ele o juiz Abu Umar, que trajava uma túnica opulenta. Pretendendo constrangê-lo, o vizir perguntou:
– Ó Abu Umar! Quanto pagou por essa túnica?
O juiz respondeu:
– Duzentas moedas de ouro.
O vizir disse:
– Mas eu comprei esta capa e esta túnica que está por baixo dela por vinte moedas de ouro.
O juiz Abu Umar respondeu rapidamente, como se já tivesse planejado a resposta:
– O vizir – que Deus o fortaleça! – embeleza as roupas que usa, não necessitando de excessos no vestir. Todos sabem que ele tem condições de desprezar essas coisas. Nós, porém, nos embelezamos com as roupas e necessitamos de excesso, uma vez que nos envolvemos com o populacho e com pessoas a quem devemos muito respeito, e diante das quais devemos manter a compostura.
Foi como se ele tivesse enfiado pedras na boca do vizir, que o deixou em paz.

[Excerto de Almuhassin Attanúkhi (séc. X) Palestras agradáveis e notícias memoráveis Trad. Mamede Mustafá Jarouche]

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Atentada Tradução V: La Rochefoucauld

Réflexions Diverses – VII. Des Exemples
Quelque différence qu’il y ait entre les bons et les mauvais exemples, on trouvera que les uns et les autres ont presque également produit de méchants effets. Je ne sais même si les crimes de Tibère et de Néron ne nous éloignent pas plus du vice que les exemples estimables des plus grands hommes ne nous approchent de la vertu. Combien la valeur d’Alexandre a-t-elle fait de fanfarons ! Combien la gloire de César a-t-elle autorisé d’entreprises contre la patrie ! Combien Rome et Sparte ont-elles loué de vertus farouches ! Combien Diogène a-t-il fait de philosophes importuns, Cicéron de babillards, Pomponius Atticus de gens neutres et paresseux, Marius et Sylla de vindicatifs, Lucullus de voluptueux, Alcibiade et Antoine de débauchés, Caton d’opiniâtres ! Tous ces grands originaux ont produit un nombre infini de mauvaises copies. Les vertus sont frontières des vices ; les exemples sont des guides qui nos égarent souvent, et nous sommes si remplis de fausseté que nous ne nous en servons pas moins pour nous éloigner du chemin de la vertu que pour le suivre.
Reflexões Diversas – VII. Dos Exemplos

Por mais diferenças que haja entre os bons e maus exemplos, ocorre que uns e outros produzem, quase igualmente, efeitos ruins. Eu não sei mesmo se os crimes de Tibério e Nero não nos afastam mais do vício que os exemplos estimáveis dos maiores homens nos aproximam da virtude. O valor de Alexandre, quantos fanfarrões fez! A glória de César, quantas investidas contra a pátria não autorizou! Roma e Esparta, quantas virtudes selvagens louvaram! Diógenes, quantos filósofos inoportunos fez; Cícero, tagarelas; Pompônio Ático, pessoas neutras e preguiçosas; Mário e Sila, vingativas; Luculo, voluptuosas; Alcibíades e Antônio, devassas; Catão, opiniáticas! Todos esses grandes originais produziram um número infinito de cópias más. As virtudes são fronteiriças aos vícios; os exemplos são guias que nos desviam freqüentemente e nós estamos tão cheios de falsidade que não nos servimos menos deles para nos afastar do caminho da virtude que para segui-lo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Do Desejo por Homero

Hoje, tanto quanto ontem, muitas pessoas desejam ser famosas. É uma aspiração humana e perene, indestrutível como a de vencer a morte. A fama, contudo, tradicionalmente entendida como coroação de um grande feito, tem assumido novos contornos, os quais não se devem aos cantos de novos poetas. O mérito – artístico, científico, esportivo, político, moral, quem sabe até o mérito militar – anda em baixa, anda muito em baixa. Pouco valem as razões para a fama, que se pode ganhar por qualquer motivação, ainda que vil, abjeta, mesquinha. Queremos ser lembrados, queremos ser notados, não importa o porquê.

Hoje, muito mais que ontem, vivemos como se o anonimato fosse desprezível e tentamos a todo o tempo e a qualquer custo angariar a atenção de quem nos cerca. A vida simples e comum, que é a vida da maior parte de nós, foi taxada de ingênua e entediante, de comezinha. Por causa disso, nos aventuramos pelo dia-a-dia com ares de desbravador ou príncipe, quando na verdade apenas fantasiamos a vida ordinária em conformidade com a ilusão com que pretendemos nos enaltecer. Relutamos em ser pessoas comuns.

Vivemos como se fosse preciso ser grande e célebre, como se tivéssemos de redimir o cotidiano, donde o ímpeto para transfigurarmos a nós mesmos em personagens que não somos, inflarmos nossas ações em feitos que jamais faremos. Queremos que nossa história seja memorável, que nossa vida seja uma epopéia, mesmo se não passa de uma presepada.

Vivemos sem saber que extraordinário é ser simples.