domingo, 24 de outubro de 2010

Atentada Tradução VIII: Cioran

Précis de Décomposition
Théorie de la Bonté

« Puisque pour vous il n’y a point d’ultime critère ni d’irrévocable principe, et aucun dieu, qu’est-ce qui vous empêche de perpétuer tous les forfaits ? »
« Je découvre en moi autant de mal que chez quiconque, mais, exécrant l’action, – mère de tous les vices – je ne suis cause de souffrance pour personne. Inoffensif, sans avidité, et sans assez d’énergie ni d’indécence pour affronter les autres, je laisse le monde tel que je l’ai trouvé. Se venger présuppose une vigilance de chaque instant et un esprit de système, une continuité coûteuse, alors que l’indifférence du pardon et du mépris rend les heures agréablement vides. Toutes les morales représentent un danger pour la bonté ; seule l’incurie la sauve. Ayant choisi le flegme de l’imbécile et l’apathie de l’ange, je me suis exclu des actes et, comme la bonté est incompatible avec la vie, je me suis décomposé pour être bon. »
Breviário da Decomposição
Teoria da Bondade

“Dado que para você não há critério último nem princípio irrevogável, e nenhum deus, o que te impede de perpetrar todos os crimes?”
“Descubro em mim tanto mal quanto em qualquer outro, mas, execrando a ação – mãe de todos os vícios – não sou causa de sofrimento para ninguém. Inofensivo, sem avidez, e sem energia suficiente nem indecência para afrontar os outros, deixo o mundo tal qual o encontrei. Vingar-se pressupõe uma vigilância de todos os instantes e um espírito de sistema, uma continuidade custosa, ao passo que a indiferença do perdão e do desprezo torna as horas agradavelmente vazias. Todas as morais representam um perigo para a bondade; somente a incúria a salva. Tendo escolhido o fleuma do imbecil e a apatia do anjo, privei-me das ações e, como a bondade é incompatível com a vida, eu me decompus para ser bom.”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Uma nota eleitoral

É com imensa tristeza que acompanho os rumos da política no Brasil. Ainda criança, lembro-me de assistir à posse de Collor ao lado de meu pai, que, sempre impaciente, foi incapaz de me explicar a importância daquele evento. Àquela altura, não sabia dimensionar o que acontecia, mas, desde então, a política passou a me interessar, em especial pelo fato de residir ao lado de uma grande favela. O incômodo pela pobreza, pela desigualdade e violência, é uma marca indelével que carrego comigo, donde meu anseio em conhecer um mundo justo.
Admito com franqueza, portanto, uma especial atenção para o problema da distribuição de renda. Considero inadmissível que tenhamos um único cidadão na miséria e não consigo conceber como aceitamos que milhões (ou mais de um bilhão, se pensarmos no globo) sobrevivam abaixo do limiar da dignidade. Dessa perspectiva, parece-me relevante, em cada processo eleitoral, rastrear onde se encontram as forças sociais que pendem para a concentração de riqueza, poder e influência.
Além disso, sinto-me seguro em dizer que a separação entre estado e religião é salutar, que se trata de uma verdadeira conquista da modernidade, embora nunca tenha sido levada a cabo plenamente. Julgo-a salutar, dentre outras razões, porque a religião – se observarmos a história – sempre esteve à mercê de líderes radicais ou de convicções que conduzem à intolerância e à guerra. Lembremos apenas as disputas entre católicos e protestantes e quanto sangue ela fez correr, quanto sangue inútil derramou. Se desejamos estar protegidos dos excessos que os fanáticos não cansam de reavivar, é preciso que o poder político se mantenha isento quanto às questões de fé.
Isso significa que o estado de direito não pode legitimamente penetrar o reduto sagrado das crenças íntimas: é tirania coagir cidadãos a crer ou descrer de seu Deus e seus dogmas. Todavia, o estado também não pode voltar suas costas para a realidade e omitir-se perante o que de fato acontece. Quando se fala em aborto, em direitos civis, em pesquisas com células-tronco, fala-se em questões que afligem a sociedade e que devem ser solucionadas política e não religiosamente. Ninguém pretende tornar o aborto obrigatório, exigir que todos se casem com pessoas do mesmo sexo ou deixar que os cientistas usem células-tronco para se divertir em laboratórios. Muito pelo contrário. A verdadeira questão, agora mais do que nunca, é a liberdade e a responsabilidade.
Sendo assim, penso que o debate político e a discussão de programas de governo, sobretudo no tocante à desigualdade econômico-social, não devem ser obscurecidos por meio de referências sensacionalistas a artigos de fé. É preciso que as análises se façam com a racionalidade possível e com o mínimo apelo às paixões. É do diálogo aberto que precisamos, não de subterfúgios retóricos e estratagemas eleitoreiros. No entanto, se cumpre fazer apelo à religião, penso que devemos recordar a profecia de Isaías: não haverá paz enquanto não houver justiça (Is. 32:17), profecia que manteve e manterá sempre acesa a chama da esperança e da luta daqueles que almejam um Brasil para todos.