sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pedido de Natal

Senhor,
escrevo para fazer um pedido, mas, antes de tudo, sinto que devo me desculpar. Como as pessoas estão especialmente voltadas para o Papai Noel, imagino que esta noite te seja tranqüila e que um pedido de última hora só pode perturbar. Sei que causo incômodo por não me comportar como os outros, por não substituir tua imagem pela do velho barbudo de vermelho e renas, por não comprar nenhum presente, por não admirar as árvores com bolinhas. Peço desculpas, pois, por tantos nãos e pela minha estranheza.
Acredito que saiba que nunca fui de religião, embora busque encontrar na escuridão do dia-a-dia um sentido que aplaque o sentimento de absurdo que, com tanta freqüência, o senhor deixa espocar no meu peito. Confesso que, vez ou outra, penso-te como deus absconditus na tentativa de te salvar da descrença, mas a verdade é que minha busca por ti tem vacilado. Tua face ainda me é desconhecida e tua presença só se manifesta como falta e ferida.
As orações tradicionais, já não consigo rezá-las. Compreendo as palavras, mas elas me dizem pouco, não tocam minha alma, são só palavras. Por causa disso, senhor, rogo a ti um pedido, eu que, como tantos outros, ando tão enfeitiçado pelas urgências do cotidiano, tão acomodado com uma vida morna; eu que, como tantos outros, mal alço os olhos para ver o horizonte. Por favor, tenho pouco a dizer, mas acata-o, reconhece o grito neste sussurro:
Senhor, se tu és o sentido da dor, a chave do mistério que nos assola, dá-me a fome, Senhor, dá-me a sede e o ardor, mergulha-me no gelo e no fogo, traze a faca e o espinho, abrasa meu corpo, mas abre meus olhos para beleza.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Zoológico XXI

Quando ainda adolescente, fiz uma viagem para o norte de Minas. Visitei uma pequena comunidade chamada Tanque, que mal totalizava duas dezenas de famílias. Era, se me lembro bem, um distrito de Porteirinha e, na ausência de hotel ou pousada, um casal com três filhos hospedou-me em sua casa.

Dentre muitas coisas que me marcaram, cito um episódio. O caçula da família que me recebeu, chamado Lázaro, ficava sempre a meu lado, como que tomando conta de mim, a ponto tal que resolvi lhe pedir um favor: indicar-me tudo que achava que eu não conhecia, sobretudo plantas, frutas e animais. Tive, como conseqüência, dias maravilhosos incrustados com pequenas descobertas. Numa determinada tarde, ele me pediu silêncio e indicou uma trilha. Segui-o calado até que apontou: um gato! Caí na gargalhada: “Uai, ocê tá achando qu’eu não conheço gato?! Gat’eu conheço! Eu sou da cidade, mas alguns bichos eu já vi.”

Pois outro dia soube de uma notícia ótima. Um zoológico da Alemanha resolveu colocar vaca em exposição. Tomei um grande susto, mas depois me recompus, tendo recordado minha viagem a Tanque. Não há que surpreender a decisão dos administradores daquele zôo. Cada vez mais distanciados de experiências diretas com a natureza, estamos perdendo o contato mesmo com animais relativamente comuns, para não falar em outras perdas, talvez mais relevantes, causadas pela nossa vida urbana, demasiado urbana.

Comentando a notícia entre colegas, escutei histórias de amigos professores e descobri que há crianças que nunca viram galinha, que pensam que frango nasce no freezer, que não imaginam como é um porco e que sentem nojo de leite ao saber que saiu de uma teta. Todas crianças brasileiras, para as quais documentários à la Discovery ou viagens a praias bem administradas esgota o contato com o mundo, por assim dizer, selvagem. Crianças brasileiras, como alemãs, inglesas, francesas – como qualquer criança citadina?

A continuar assim, os netos do Lázaro terão muito mais trabalho do que aquele que lhe dei, se é que nós ainda cogitaremos nadar em rios (e não em piscinas cloradas), sujar os pés com terra (e não o sapato com pó asfáltico), colher frutas no pé (e não em prateleiras), olhar montanhas (e não fachadas de prédio), sentir o vento (e não o ar-condicionado), se é que nós, afinal de contas, ainda seremos humanos (e não apenas bichos urbanos).