quarta-feira, 30 de março de 2011

Francotônica II: Dos Mundos

O Pequeno Príncipe não é só um livro de misse. É cartão-postal, ímã de geladeira, estampa de camisa e, agora também, DVD. Foi o que descobri outro dia, sentando-me junto a duas crianças na casa de uma amiga. Eram seus filhos, de três e seis anos, que estavam quietos no quarto de brinquedos, onde se isolavam do convívio dos adultos reunidos para um jantar. O filme a que assistiam, uma adaptação livre de Saint-Exupéry, era feito de animações e parecia bem legal, a julgar pelos olhos vidrados.
Mais tarde, soube que os meninos já o haviam assistido várias vezes. É curioso como as crianças não se entediam, mesmo fazendo reiteradamente a mesma coisa. Terminado o filme, a dupla resolveu brincar: um seria o pequeno príncipe; o outro, a raposa; e o colchão em que um casal de visitas dormiria ficou como cenário, enriquecido que foi com bonecos e caixas.
É claro que toda a ornamentação era muito precária, mas os objetos eram apenas ensejo para a imaginação, balizas para definir o campo das aventuras a vivenciar. O fundamental os meninos traziam em si: a capacidade de inventar, de se entregar ao jogo e, terminada a brincadeira, de dele sair. Qualquer criança sabe separar muito bem os dois mundos, a despeito do mergulho profundo no da imaginação.
Já nós, adultos, estamos sempre a misturar as estações. Durante a maior parte do tempo, assumimos personagens mais ou menos fictícios e, levando-nos demasiadamente a sério, esquecemos que “coerência”, “prioridades”, “reconhecimento” (e outras tantas fantasias capciosas) são nada mais que peças da brincadeira chamada maturidade. Que desatino! Precisamos urgentemente readquirir o espírito da infância e a argúcia para reencontrarmo-nos a nós mesmos, pois talvez ainda nos seja possível rever as coisas sem o manto com que as cobrimos, nos desvencilhar de nossas projeções e voltar ao mundo real, o B-612.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Com choro e com vela

Lembro-me como se fosse hoje do dia em que uma amiga me falou das carpideiras. Nunca ouvira falar na palavra e sequer imaginava que pudesse haver pessoas que fossem pagas para chorar por outras. Enterro, velório, mas também casamento e despedida, qualquer ocasião é ocasião para elas, desde que lágrimas sejam precisas. Interessante que o substantivo só exista no feminino: carpideiras são mulheres, mulheres que choram.

Num primeiro momento, fiquei muito surpreso e achei um absurdo. “Pagar alguém para chorar no seu lugar? Ou para impressionar terceiros?” Cheguei a supor que era invencionice contemporânea, mas a prática é antiga. Hoje, lendo uma biografia de Marco Polo, me dei conta de que existia numa cidade portuária do golfo pérsico no século XIII, quando se deram as andanças do veneziano: viúvas muçulmanas, que tinham de chorar a morte do falecido durante quatro anos consecutivos, todos os dias do ano, podiam, quando cansadas, recorrer a esse auxílio profissional.

Confesso que gostaria de entender a profissão, conversar com uma dessas senhoras, saber das histórias de lágrimas de crocodilo. Que significado dão à sua tarefa? Quem as contrata? Quanto custa a hora de choro? E, além disso, quando surgiu a prática de carpir? Onde? Como? Por que? Convenhamos: as carpideiras são intrigantes e uma alternativa curiosa para quem se cansou de chorar, já que não dá para delegar a tristeza, felizmente.

domingo, 13 de março de 2011

Francotônica I: E somos todos tibetanos

Nas andanças da vida, por um golpe de sorte acabei fazendo duas novas amizades. Estava numa conferência, sentado ao fundo de uma velha capela do século XVII, quando um chinês e uma senhora francesa sentaram-se ao meu lado. Por terem chegado um pouco atrasados, acabaram por me consultar acerca do que se passava e essa pequena consulta deu ensejo, na recepção que se seguiu à palestra, a uma conversa calorosa e gentil. Como resultado, fui convidado para um jantar na casa da Madame Villard algumas semanas depois, para o qual Qinghua e eu fomos juntos, já que tomaríamos o mesmo metrô.

A noite foi muito agradável e a conversa, como sempre nos jantares franceses, foi tão longa e variada como a refeição. Um casal de vizinhos da Mme Villard também estava presente e levou consigo seus dois filhos, um ainda adolescente. Marcou-me o quanto todos foram simpáticos e, mais do isso, a gratuidade da gentileza. Que bom que eu, num primeiro momento hesitante, finalmente aceitei o convite.

Daquela noite, porém, destaco um registro especial. É que em determinado momento a conversa passou a tratar da China, migrou para Macau e depois chegou ao Tibet. Qinghua nos contou, da perspectiva que lhe é própria, que os tibetanos aceitam a presença chinesa, pois é ela que assegura o desenvolvimento e “as pessoas querem ter coisas, querem o progresso”. A seus olhos, tudo se passa como se a resistência do Dalai Lama fosse uma exceção, já que o povo habituou-se ao domínio chinês (truculento que seja, acrescento eu) e está mais interessado no avanço material do que na liberdade.

Não emiti comentário algum quando estávamos à mesa, mas confesso que fiquei um tanto triste. Não me refiro à opressão política e ao dirigismo estatal, que me interessam menos do que a uniformização do sentido que damos às nossas vidas: também os tibetanos desejam o progresso, o conforto material... Considero que, mais que a tirania, mais que a violência ou a imposição do silêncio, o pior massacre que vemos na contemporaneidade (e que assola todos os povos) é o massacre do desejo, tolhido pela ilusão do consumo e planificado basicamente nos mesmos objetos. Acho impossível que sejamos felizes centrando-nos apenas nisso e, dada a perda de nossas identidades e diferenças, lamento que caminhemos para um nivelamento amorfo e global, lamento que caminhemos para nos tornar todos tibetanos, isto é, franceses, isto é, turcos, isto é, bolivianos, isto é, senegaleses, isto é, sauditas, isto é, filipinos, isto é, estadunidenses, isto é, zés-ninguéns.