sábado, 30 de abril de 2011

Ainda o vinho

[Do Lutgarda n.2, de meados de 2000]
Era uma vez um homem que amou desmedidamente uma mulher.
Era a mesma vez uma mulher que amou desmedidamente um homem.
Outra era a vez em que conheceram o tempo.
Outra era a mesma vez em que conheceram o medo do tempo.
Outra era ainda a mesma vez em que mediram o amor pelo tempo.
Era-se a vez em que se amaram desmedidamente.

domingo, 24 de abril de 2011

Atentada Tradução IX: Anacreonte

gerōn d’hotan khoreuē
trikhas gerōn men estin

tas de phrenas neazei
Um velho, quando dança,
permanece com cabelo envelhecido,
mas seu espírito rejuvenesce.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Duas historietas e um canto de Tagore

para os amigos que perdi
Numa rua próxima à da minha casa, morava uma benzedeira, que muitas vezes visitei na infância, quando minha mãe julgava que eu estava muito encapetado ou me machucando demais. Era uma senhora negra, que, vendo-nos cruzar o quintal, logo abria um sorriso luminoso, puxava uma cadeira de madeira para um canto sombreado e, colocando-me no colo, fazia umas rezas ao mesmo tempo em que batia na minha cabeça folhas de sei-lá-o-quê.

Anos depois, já crescido, resolvi revê-la. A casa ainda existia, embora sufocada por prédios enormes feitos ao seu redor. Toquei o interfone e veio uma mulher, talvez nos seus quarenta anos, possivelmente sua filha ou nora. “Aqui ainda mora uma senhora que benze?” “Sim, mas ela não benze mais.” “O que houve? Ela não está bem de saúde?” “Não, virou evangélica.”

* * *
Não fosse um grande acaso, acho que não teria sido convidado para o casamento de um amigo. Certamente ele ainda se lembrava de mim e das várias coisas que fizemos juntos, mas o envolvimento com a yoga, que começara a praticar alguns anos antes, havia a tal ponto crescido que qualquer coisa não pertencente a esse universo estava sendo deixada de lado. No dia do casório, essa impressão se confirmou: afora a família e uns raros velhos amigos, todos os presentes na cerimônia sentavam-se em lótus e portavam um turbante branco.

Confesso que fiquei deveras surpreso com isso, porque tinha dificuldade em imaginar que meu amigo e sua esposa, sempre tão abertos ao mundo, à variedade de experiências que a vida oferece, pudessem ter mergulhado no sadhana em detrimento de tudo o mais. Com certo tom de lamento, saí da celebração meditando algumas questões que permanecem comigo, pois não nos encontramos novamente: por que as trilhas espirituais são tão exclusivistas? Até o amor e a amizade precisam ser submetidos ao crivo da crença?
* * *
Rabindranath Tagore – Gitanjali – 8º Canto
“A criança que está coberta com um robe de príncipe e tem colares de jóias ao redor do pescoço perde todo prazer em sua brincadeira; seu traje refreia-a a cada passo.
Com medo de que se desfie ou se desgaste com poeira, ela se afasta do mundo e tem medo até de mover-se.
Mãe, não há ganho algum nesta sujeição ao luxo, se ela lhe veda o contato com a saudável poeira da terra, se lhe retira o direito de entrada na grande festa da vida humana comum.”