segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Princípios


Eu queria que estivesse aqui,
mas sei que nunca estará.
Por isso eu guardo minhas coisas inúteis
– ouvidos, pele, uma foto da infância –
e encubro confissões engolindo o jantar não partilhado.
Às vezes escrevo, às vezes leio,
até filmes tento assistir,
busco afazeres no tempo que eu desejava perder.
Já que não vem e jamais virá,
tenho de me recompor,
ater-me ao essencial:
desejar algo que não seja seu corpo.
Tenho de deixar de ensaiar gestos,
de reservar no armário a segunda toalha,
de planejar o café para a manhã seguinte.
Preciso voltar a fazer sentido,
recuperar o olhar para o desimportante:
pensar nos trabalhos e contas,
combinar calça e meias,
indignar-me com as injustiças do mundo.
Preciso encontrar um novo começo,
restaurar a ilusão de que a vida é possível.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Praças e Praças


Minha mãe contava que, no tempo dela (nem tão longe assim), havia um rito para o flerte: ir à praça e caminhar em círculos, as mulheres num sentido e os homens no outro, todos atentos aos sinais que podiam ser emitidos, normalmente bem discretos: um sorriso, uma piscadela. Confesso que, num primeiro momento, não acreditei no relato: aos meus olhos, pareceu pré-histórico. No entanto, compreendi depois, era a época das escolas separadas entre meninos e meninas, dos assentos na igreja reservados aos senhores e senhoras, práticas que existiram, por mais inimagináveis que soem.

Conta minha mãe que, à noite, os jovens freqüentavam bailes (não baladas), trocavam olhares, bebiam um pouco e dançavam. Havia a expressão “par constante” para aqueles que sempre dançavam juntos e não namoravam. Isso de ficar, como todos sabemos, estava fora de cogitação. O ficar é uma invenção genial, mas bastante recente. Apenas de uns tempos para cá é que os contatos da noite, em especial com o sexo oposto, não se fazem mais a duras penas, asfixiados por interditos. Hoje o desejo pode se manifestar de modo muito menos enviesado. As aproximações são mais fáceis e é até possível uma amizade franca entre homem e mulher.

Ao contrário de muitos que o recriminam ou lamentam, arrisco-me a dizer que não se namora menos por causa do ficar. Quando existe a vontade de permanecer junto, tudo se passa como antigamente. Não faz sentido denegrir o ficar afirmando que é menos durável. Seu valor reside na efemeridade e nas descobertas de si e dos outros que dele provêm. Seguramente, o namoro é algo que não interessa a todas as pessoas que estão na balada, mas o fato é que estamos diante de dois comportamentos (namorar e ficar) que operam em registros diferentes. Cabe a nós aprender a caminhar nas praças que freqüentamos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Don Juan


Há quem pense que o Don Juan gosta de mulheres. Não é verdade. Ele gosta da conquista. Interessa-lhe ter uma mulher depois de outra para afirmar continuamente sua capacidade de seduzir. Num certo sentido, as mulheres são irrelevantes para ele, já que seu prazer está em possuir e descartar. Talvez se possa dizer que o Don Juan é um grande vaidoso e que está voltado exclusivamente para si mesmo. Ele jamais se envolve, jamais se abre, apenas usa as mulheres para reiterar seu poder. Acredito que seja, por causa disso, um grande solitário. A solidão, aliás, é a marca que acompanha quem tem uma fila longa e sempre andando. As companhias fugazes não chegam a penetrar o reduto da intimidade, ainda que nos revelem os caminhos de seus corpos.

Não sei se podemos afirmar que o Don Juan é um canalha. Eu diria antes que é um sofredor, aprisionado que está na impossibilidade de se relacionar com o mínimo de aprofundamento. Quanto a mim, confesso que me identifico com o personagem. Se muitas vezes sou feito de idiota (ou me deixo ser tratado como tal), outras tantas sou eu quem chega, beija, transa e, no dia seguinte, não quer mais nada. Não é muito do meu feitio, mas seria falso recusar-me a admitir que às vezes faço dos encontros um mero passatempo ou uma oportunidade para descarregar a libido sem usar minhas próprias mãos.

Nesses momentos, sei que não vou me envolver afetivamente. Trata-se de divertimento e, por conseguinte, despreocupo-me em pegar o telefone, anotar o email e mesmo decorar o nome. Minha delicadeza consiste em deixar clara a natureza da relação. Ao tratar alguém como objeto, acho justo informar a outra pessoa que ela é descartável. Não nesses termos, evidentemente, porque há formas menos amargas de sermos sinceros. Don Juan é um galanteador e sabe obter da vítima o consentimento antes de sacrificá-la no altar de Eros.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Idiotice Confessa


Confesso que tenho me sentido um grande idiota. Sinto-me idiota pelo modo como sou tratado no pós-balada, por assim dizer. Sabe aquilo de telefonar e não conseguir conversar direito? De mandar sms e não obter resposta? De ficar a ver navios? Sim, todos sabemos que os encontros da noite, na maioria das vezes, não resultam em nada mesmo. No entanto, não compreendo porque não podem render um diálogo, ainda que pequeno, no dia seguinte ou nos dias que se seguem ao encontro. Acredito que as relações, por mais superficiais que sejam, podem comportar um mínimo de gentileza, nem que seja a de um “não” sincero, que é muitíssimo melhor do que qualquer enrolação, pois evita que nos percamos em fantasias.

Em certa ocasião, ao desabafar com uma amiga, ela tentou me consolar dizendo o que muitos apontam: a balada é diversa e nela certamente há pessoas legais. O desafio é encontrá-las. Entretanto, à medida que a fila anda (a minha e a de meus amigos, cujas histórias acompanho) parece-me impossível fechar os olhos para um fato: há muitas pessoas na noite fazendo as outras de idiotas. É comum pedirem o número do celular e nunca telefonar; responderem mensagens de maneira lacônica; e isso para não mencionar os casos de mentira ou dissimulação. Pergunto-me, portanto: onde estão as pessoas legais?

No fundo, intriga-me o quanto temos dificuldade em sermos sinceros, em jogarmos limpo com os outros, como normalmente se diz. Se o interesse é apenas sexo casual, por que não pode ser dito com todas as letras? A amiga com quem eu conversava me aconselhava a não esperar muito das pessoas, a não esperar que sejam sinceras. Entretanto, temo que a conquista dessa indiferença exija a elaboração de uma crosta que, se me protege das indelicadezas e descasos, ao mesmo tempo me impede de aproximar-me intimamente das pessoas. Não faço cálculos, não fico medindo palavras ou atitudes com quem está ao meu lado, mesmo que por uma única noite. Sei que em meus momentos de sofrimento eu me culpo por ter me exposto mais do que deveria, por ter insistido num possível amor, a despeito dos sinais de desprezo. Nesses momentos, sinto-me a pessoa mais idiota do mundo e juro que, da próxima vez, será diferente. Nunca é – e eu já não me importo mais.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A propósito do óbvio


Conheço poucas pessoas que vão a uma boîte para escutar música ou beber. Nem sempre o som é de boa qualidade, às vezes os DJ’s são amadores e o preço dos drinks e mesmo da cerveja é mais alto do que o de qualquer boteco. Sei de algumas pessoas, contudo, que vão para a balada para encontrar amigos da noite; outras, para dançar e curtir música alta, mas a maior parte – sejamos sinceros – está interessada na caça. O que importa é descolar uns beijos, quem sabe uma boa transa, já que amor é artigo raro, se é que existe.

É nessa toada, a do desejo à flor da pele, que os encontros se fazem. Na balada, eles não demoram a acontecer, eclodem depois do tempo necessário para se percorrer a boîte, ainda que apenas visualmente, a fim de se ter uma idéia da galera: se as pessoas são bonitas, se deu gente estranha, quem vale a pena, quem não vale. Não entro no mérito desse juízo estético, o qual contém um enorme componente sócio-econômico. Interessa-me antes ressaltar que as escolhas se fazem baseadas na aparência e que os encontros se dão numa velocidade ímpar. Não há tempo para a corte. Na balada, ao ver alguém que atrai nosso desejo, vamos logo ao ataque, partimos em busca da conquista.

E, como numa guerra, a estratégia é atingir o alvo sem delongas: queremos ansiosamente ocupar o território, derrubar o inimigo. Não podemos (pois temos concorrentes) e nem queremos (já que o desejo borbulha) perder tempo: olhamos ostensivamente, estabelecemos um diálogo que se quer minimalista. Tudo é muito claro, os códigos são facilmente decifráveis. Quem, por exemplo, não compreende o que significa o posso te conhecer? Todos sabemos que é um eufemismo para quero ficar com você!, não é verdade? A balada é muito óbvia, as aproximações prescindem de qualquer sutileza.

Acredito que quem freqüenta a noite adere a um acordo tácito, segundo o qual podemos ser explícitos na demonstração do desejo e, por conseguinte, também das recusas: um “não” chapado pode sempre ser lançado na nossa cara. A balada é direta, imediatista, contundente. Acho que por isso está tão ligada ao sexo, que se presta bem a ser simples e previsível. Ao mesmo tempo, acho que é por isso que a balada enfastia. Em determinados momentos, ela simplesmente se esgota, perde a graça, como um filme pornô. Viver no óbvio cansa. O obscuro, o sinuoso, o incerto nos faz muita falta. Precisamos do que é sutil e traiçoeiro. Daí falarmos em amor.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Apologia à Noite


Sejamos verdadeiros: quem agüenta ser sério todo o tempo? Quem suporta o peso da coerência sem jamais incorrer em contradição? Quem nunca cometeu uma extravagância? Quem nunca disse “que se dane o amanhã, depois eu me viro”? Quem nunca?

E quem nunca beijou sem compromisso? Teve uma transa pela transa? Quem nunca se perdeu de tesão? Quem nunca se permitiu um álcool a mais? Dançou de olhos fechados curtindo o movimento do corpo? Quem nunca olhou de soslaio para conferir um rabo de saia? Ou um abdômen torneado? Quem nunca?

Quem nunca sonhou acordado com prazeres secretos? Ou mergulhou no sexo esquecendo-se de si? Quem nunca foi para a noite à flor da pele? E escolheu seu par pelo rosto, pelo peito ou pela bunda? Quem nunca se arrependeu de um monte de coisas? E as repetiu pouco depois? Quem nunca fingiu-se contido fervendo por dentro?

Quem nunca condenou os outros e se viu fazendo o mesmo? Quem nunca teve inveja de quem realiza um desejo proibido para nós? Quem nunca quis ser puta? Quem nunca quis bater? Apanhar? Quem nunca caiu de boca?

Quem nunca desejou a loucura? Ardeu de desejo? Quem nunca quis tudo neste instante agora? Correr como um cavalo? Lançar-se num precipício? Quem nunca quis só o prazer? Quem nunca agiu sem pensar e viu que foi bom?

Sejamos verdadeiros: alguém nunca?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Do Impossível II


Ainda pensando sobre a noção de certeza para qualificar os relacionamentos, tenho me detido na fórmula “pessoa certa”. Acho-a intrigante e me pergunto o que de fato significa. Evidentemente, meu interesse não é fazer um inventário das combinações de qualidades a que nos apegamos ou defeitos que nos repelem. Essa seria uma tarefa inglória. Cada um define a “pessoa certa” conforme seus desejos e limitações, e eu, felizmente, estou livre do impulso de julgar a preferência alheia. Reconheço a diversidade de nossas inclinações e tendo a acreditar que os mais variados tipos podem encontrar seu par, se é mesmo verdade, como brincava minha avó, que não há pé fedido que não encontre seu sapato.

Entretanto, a despeito de toda variação que pode haver em nossas preferências, creio ser possível apontar um ponto comum. Não me refiro a uma qualidade que todos busquemos, mas a um padrão de comportamento: ao pensarmos em termos da “pessoa certa”, concentramos nossa atenção no outro, no objeto do amor, e inevitavelmente depositamos sobre ele as expectativas para o relacionamento vingar. Raciocinamos mais ou menos assim: “quando aparecer a “pessoa certa”, vou conseguir me abrir e me entregar, vou conseguir ser e fazer o que sempre quis e nunca dei conta”. O pressuposto desse raciocínio é que estamos prontos para amar. Se ainda não amamos, é porque a “pessoa certa” não apareceu, porque não tivemos a sorte de topar com ela.

E é justamente esse pressuposto que merece ser analisado. Se a “pessoa certa” vier a aparecer, estaremos mesmo preparados para amar? No ideário da “pessoa certa”, nós nos preocupamos em ter claras as qualidades que buscamos e estamos sempre afiados para avaliar as pessoas que conhecemos, normalmente para apontar algum aspecto que não nos satisfaz. Mantemos os olhos voltados para fora, por assim dizer, e freqüentemente pouco nos importamos em voltá-los para nós. É claro que o outro é fundamental, que temos de encontrar alguém com que nos identifiquemos. No entanto, penso que nos enganamos com a ênfase dada ao objeto do amor, porque deixamos de nos perguntar sobre nossa capacidade de amar. Tendemos a tomá-la como dada, como se a tivéssemos de antemão, como se realmente estivéssemos prontos. Acredito, com toda sinceridade, que não poderíamos estar mais iludidos.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Do Impossível I


“Enquanto não encontro a certa, vou me divertindo com as erradas”, disse-me um amigo para explicar seu comportamento, quando ainda éramos adolescentes. De lá pra cá, acho que pouca coisa mudou, embora já não sejamos tão jovens. Uma certa maturidade deixa-nos mais cuidadosos e seletivos (sim, há exceções), mas isso não quer dizer que a fila estacione...

Na realidade, é muito difícil encontrar a pessoa certa. Existe, aliás, a pessoa certa? Quanta sorte precisamos ter para encontrá-la? Ou é nossa disposição interior que torna alguém certo? É muito cômodo pensar que a questão resida exclusivamente no outro. Entre outras coisas, nós nos eximimos de responsabilidade quando estamos sós (a pessoa certa ainda não apareceu) e quando o relacionamento não dá certo (a culpa era do outro, inadequado para nós). Ainda que a custo do auto-engano, pensar assim é reconfortante, pois fica mais fácil mascarar nossos defeitos e menos doído engolir as decepções que enfrentamos.

Convém notar, entretanto, como empregamos as noções de certo e errado para tratar dos relacionamentos: buscamos a pessoa certa, na hora certa, para que o relacionamento dê certo. Não é estranho? O relacionamento é para dar certo ou para ser bom? Ou será que ele só pode ser bom se for certo? Pelo que nossas falas revelam, somos assombrados pelo fantasma da certeza. Queremos segurança. Importa-nos ter garantias, sobretudo quanto à fidelidade e duração, mas também quanto à nossa intimidade. É assim que ainda vivenciamos os relacionamentos quando os queremos sérios (reparem o adjetivo: sério). Talvez tudo isso indique uma incapacidade de lidar com nossos medos, uma necessidade de nos proteger de antemão das inevitáveis desventuras. Não queremos correr riscos quando se trata do amor. Queremos o impossível.