terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Charme

Acho a naturalidade uma virtude. Não creio que possamos ser felizes e dignos de admiração a menos que sejamos espontâneos, demonstrando o que somos sem a afetação que adoece os partidários do estilo, desse tal de estilo. De uns tempos pra cá, sou incapaz de precisar quando, é comum ouvirmos pessoas falando em style e valorizando, na apreciação que fazem dos outros, os traços ou trejeitos que denotariam a autenticidade de fulano ou beltrano.

Salta aos olhos, porém, o quanto todo esse discurso é uma grande furada, já que vivemos uma época em que todos nós estamos cada vez mais parecidos. Não seria o ímpeto pela customização (que palavra é essa, meu Deus?) um sintoma de nossa homogeneidade? De onde mais poderia provir o ardor por nos diferenciarmos a qualquer custo? O curioso é que, como vemos todos os dias, os buracos nas calças, as tatuagens feitas sobre as mesmas partes do corpo, os cabelos com a inevitável chapinha, o vocabulário repetitivo – tudo isso nos faz farinha do mesmíssimo saco.

Por trás da valorização do estilo e da boa dose de higienismo que o acompanha, desconfio que há um desejo oculto pela perfeição, notadamente do ponto de vista estético. O estilo é sempre um artifício, uma tentativa de melhorar o que somos, negando, contudo, o que realmente somos. Ter estilo significa apagar características que nos incomodam (ou delas desviar o olhar) e nos aproximar de um ideal cool que ninguém sabe o que é. Peço que me perdoem, mas estilo me soa uma camuflagem requintada.

Nesse sentido, parece-me que ter estilo é o exato oposto de ter charme, coisa que anda fora de moda e de que mal se escuta falar. Penso o charme como uma apropriação particular das “imperfeições”, como a incorporação de nossos “defeitos” a nosso próprio ser, sem julgar que isso represente qualquer demérito. O charme, no fundo, é uma paz consigo mesmo, a aceitação da beleza de nossos pequenos desarranjos, em especial os físicos: uma pinta no meio da bochecha, algumas rugas apressadas, um leve estrabismo, cabelos brancos, covas um pouco profundas, quilinhos a mais e assim por diante, numa lista que poderia ir ao infinito, como os passos estranhos de quem foge a uma coreografia e se torna, exatamente por isso, divertido e apaixonante.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Coisas em ordem

Voltando à praça da estação para levar uns amigos ao Museu de Artes e Ofícios, lembrei-me de um conhecido que vi por lá há alguns anos e com quem, desde então, talvez não tenha mais me encontrado. Achava-o um pouco insistente, sempre me demandando muito, e recordo-me que, naquela ocasião, dei a resposta que sempre lhe dava ao me perguntar como eu estava: “estou colocando as coisas em ordem”. “Mas você está sempre colocando as coisas em ordem!”, ele me retrucou.

Devo admitir que empregava essa fórmula muitas vezes, normalmente com o intuito de esquivar-me de entrar em detalhes sobre minha vida frente a pessoas que, ao menos aos meus olhos, queriam avançar uma fronteira que eu desejava manter fechada. Penso que acontece com todos: algumas pessoas querem se tornar próximas de nós e nós, sem saber o porquê, não sentimos vontade de nos abrir.

Devo admitir ainda que, ao ser confrontado com o “mas você está sempre colocando as coisas em ordem!”, acabei percebendo algo que me passava despercebido. Essa fórmula, embora corriqueira, revelava uma verdade sobre mim: eu sempre me sentia ultrapassado pela vida, uma pessoa que não dava conta de elaborar tudo o que os dias oferecem e precisava se recolher para assimilar sentimentos e pensamentos.

Acontece que as coisas, ainda que tentemos, nunca ficam totalmente em ordem. Mais do que querer encontrar a ordenação perfeita da nossa vida, o melhor a fazer é aprender a conviver com uma certa desordenação. Colocar as coisas em ordem, agora vejo, representava um impulso para dar às minhas vivências um caráter coerente, englobá-las numa totalidade que conferiria significado à vida ou, ao menos, à minha vida.

Entretanto, hoje desconfio que dotar a vida de um sentido implica reduzi-la à nossa compreensão, implica podá-la de uma série de possibilidades que não se enquadram nos limites de nosso entendimento. Não falo aqui de preconceitos, pudores ou do politicamente correto e nem me interessa falar da recusa do impulso moderado de colocar as coisas em ordem, o que nada mais é senão a loucura e a perda da tão necessária e frágil lucidez. Falo do esforço descomunal de aceitar a vida em sua plenitude e consentir a suas contradições. Se não me iludo muito, hoje o essencial me parece ser a tarefa terrivelmente humana de abarcar o imponderável no peito e dizer, a cada manhã, bom dia.