segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A carta possível

pra Passiflora

Sei da estrada de terra,
do casório na capela,
e da ceia da tarde
como um domingo na avó.

Sei das mesas dispersas,
da quadra coberta,
de dois vira-latas,
da pinga e dos maruins.

Sei das modas de viola,
dos doces da roça,
da minha falta de jeito
de olhar teu vestido azul.

Sei da festa na praia,
na outra cidade,
continuando a festa
que não quer saber de ter fim.

Sei do meu corpo cansado,
das estrelas na grama,
do meu copo de vidro,
da grappa e do trago.

Sei do som de improviso,
da dança e alguns passos,
dos meus olhos altivos,
da tua mão na minha barba.

Do teu toque eu meu rosto,
eu sei, sei hoje como soube ontem,
como soube sempre
desde aquele dia, daquela noite,
daquele céu escuro de dezembro,
início de verão
e do meu não-saber.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Por uma Filosofia da Balada II

Começo com uma confissão: sempre que vou pra balada, levo comigo um protetor auricular. O som nas boates é excessivamente alto e me fere. Além disso, sem o protetor, acordo no dia seguinte com um sino de igreja dentro da cabeça. Uma grande amiga, rindo de mim, certa vez me perguntou: “mas como você faz para conversar com as pessoas?” “Quem disse que as pessoas querem conversar?”, retruquei.

A noite é concebida de modo a inviabilizar o diálogo e quem tenta alongar muito um assunto certamente se torna um chato. A arquitetura da balada parece pensada para conformar um tipo de desejo que prescinde da fala ou a reduz ao mínimo (apenas o suficiente para a aproximação). Na noite, a atração não depende do discurso e do conhecimento do outro. A noite é o reino do olhar e, portanto, da aparência.

O ruído acachapante, o estímulo rítmico e o jogo de luzes fazem com que o interesse pelo outro se construa a partir de um não-saber. Quando duas pessoas ficam, não é porque se conheçam: elas se interessam não pelo que o outro é, mas pelo que o outro aparenta. No lusco-fusco e furor da dança, acentuados pela ausência de diálogo, abafado pelo som ambiente, tem-se do outro apenas uma imagem e é ela que move o interesse. Mas isso não é problema: quem entra numa boate sabe que outras formas de desejo ou excitação mal têm lugar ali. Num certo sentido, prevalece o desejo pelo desconhecido e superficial, pelo sinuoso e urgente.

O que se passa na noite é nada mais do que uma recusa da subjetividade. Na balada, ninguém se expõe, só se exibe. Sem o intermédio da palavra, nós nunca nos mostramos verdadeira e integralmente, pois a casca que se apresenta é uma parte ínfima e a menos importante de nós, ao menos quando se trata do amor ou da busca de um vínculo significativo entre duas pessoas. Sendo assim, flertando a partir da lógica da visualidade, nós próprios nos reduzimos aos rostos que possuímos, ao modo como dançamos, à roupa que vestimos, e não devemos nos surpreender se formos tratados como objetos e, no dia seguinte, bater em nós um tremendo vazio.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Por uma Filosofia da Balada I


We found love in a hopeless place. Eis o refrão de uma música bastante tocada na noite. É de uma canção que conheci muito recentemente e à qual nunca havia dado grande atenção até reparar sua letra. Confesso que a escuto com um sorriso nos lábios, pois acho uma grande ironia a massa informe das boates repetir aos gritos uma afirmação tão inverossímil.

Who has ever found love in a hopeless place?, pergunto a mim mesmo, sem vislumbrar qualquer resposta. Concebo a noite como a expressão máxima do “Quadrilha” do Drummond: João amava Tereza, que amava Raimundo, que amava Maria... E digo expressão máxima porque não há lugar onde se dê maiores desencontros do que na noite.

Durante certo tempo (e às vezes até hoje), saí (e saio) pras baladas nutrindo certa esperança de encontrar alguém com quem possa estabelecer um vínculo que ultrapasse o ficar. Mas a verdade é que a gente logo se desencanta ao se dar conta, depois de desencontros mais ou menos dolorosos, que está a buscar uma agulha no palheiro. A impressão que se tem é que ninguém quer nada sério, como normalmente se diz. Às vezes, chega a assolar-nos um desânimo profundo, que nos afasta da noite, desânimo proveniente do desejo ferido pela busca do quase-impossível. Who, who, who has ever found love in a hopeless place?

E não é pra menos, a gente há de convir. ‘Boate’ vem do francês boîte, caixa, e realmente parece não passar disto: uma caixa cheia de peças que, sacolejadas por um DJ, são levadas a ter encontros aleatórios umas com as outras. Fosse outro o sacolejo, outros seriam os encontros, ou melhor, desencontros. Como se percebe acompanhando as baladas, tudo (as músicas, os passos, as bebidas, as roupas, os lugares) se repete desesperadamente, exceto o arranjo – sempre variável – das peças, que em nada é afetado quando uma delas decide sair, quem sabe por desilusão, quem sabe por pensar no J. Pinto Fernandes, se é que ele ainda quer entrar na história.