domingo, 13 de maio de 2012

Mito


Das obras que a antiguidade nos legou, umas das mais famosas é o Banquete de Platão, diálogo no qual vários personagens combinam de fazer discursos sobre o amor após um jantar na casa de um amigo comum. Cada um a seu turno, os convivas tomam a palavra para apresentar o que pensam sobre Éros e elogiar, sob diversas perspectivas, essa divindade que os poetas não haviam louvado condignamente. Dos discursos, o que mais gosto é o de Aristófanes, um comediógrafo. Gosto pelo mito que apresenta, o qual pode ser resumido mais ou menos nos seguintes termos.

Originalmente, a humanidade possuía outra conformação. Havia seres “duplos”, cada um dos quais composto pelo que hoje chamamos de dois indivíduos. Existiam homens (h + h), mulheres (m + m) e, perfazendo a terceira combinação possível, andrógenos (h + m). Ocorre que esses seres “duplos”, mais fortes e vigorosos do que atualmente somos, revelaram-se presunçosos e foram punidos por Zeus, que, não podendo extingui-los, resolveu parti-los ao meio. Como conseqüência dessa divisão, formou-se uma humanidade povoada somente de homens e mulheres, todos “metades” do que outrora foram, mas à procura da completude original.

Desde já, convém reconhecer que esse mito se vale de uma compreensão mais ampla da sexualidade humana que a expressa, por exemplo, pela Bíblia. A Atenas clássica admitiu uma vivência do amor que a tradição judaico-cristã jamais autorizou e essa discrepância se faz notar pelo fato de a homossexualidade ser contemplada como uma possibilidade legítima. Éros não precisa – e nem deve – reduzir-se ao vínculo entre um Adão e uma Eva. É natural, no vasto conjunto que compomos, o conjunto inumerável dos que buscam seu par, que uma mulher se enamore de uma mulher ou um homem de um homem, o que nos leva a pensar que, fosse nossa sociedade regida por outro mito fundador que não o do Gênesis, possivelmente seríamos mais tolerantes frente a quem descobre em si o desejo espontâneo por alguém do mesmo sexo.

Mas o que quero destacar do mito, mais do que sua complacência com a diversidade humana, é a noção de completude, aspiração última de quem ama. Como diz o próprio Aristófanes, o amor nada mais é senão desejo e procura pelo todo. O amor só existe e faz sentido porque não estamos inteiros e precisamos, seja de que modo for, nos unir a um outro eu para recuperar a unidade perdida. Não se trata apenas, portanto, de ter prazer e sim de restaurar um estado que já não conhecemos mais, de fechar uma ferida que nunca curaremos sozinhos.

Acontece que Aristófanes não parece considerar que a restauração da plenitude seja possível. O máximo que podemos conseguir é, diz ele, uma pessoa “conforme ao nosso gosto”. Não há aí, contudo, nenhum tom melancólico, mas somente realista, menos para quem ainda se ilude com a esperança de encontrar um par perfeito.