segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Prazer

pra Cia Luna Lunera, na medida do possível
para nós, encharcados

Já cheguei a pensar que a solução para meus problemas era me casar. Constituir família, educar os filhos, ajudar na manutenção da casa, trabalhar para comprar um apartamento – todas essas responsabilidades me tomariam tempo, eu supunha, e acabariam por me desviar de minhas angústias, mergulhando-me numa vida sem maiores inquietações. Entretanto, logo vi que isso era bobagem. (E, se não me casei, foi por outras razões.) Não acredito mais que seja possível viver sem angústias. Melhor: já não acredito que seja possível viver bem sem angústias e, mais do que me livrar delas, sei hoje que o desafio é lidar com elas. Num certo sentido, como tantas vezes se ouve por aí, o negócio é “viver, apesar dos pesares”, “viver, apesar de”.

Esse me parece ser o mote da peça “Prazer” da Companhia Luna Lunera cuja estréia no CCBB-BH se deu há duas ou três semanas. Os quatro personagens, amigos de anos, encontram-se num apartamento para relembrar e reviver suas histórias, compartilhar intimidades. À medida que os diálogos se desenrolam, borrando as fronteiras do tempo e do espaço, os personagens começam a revelar suas inseguranças, desencontros, irrealizações, medos. A um olhar menos condescendente, tudo talvez pareça angústia-classe-média, de quem tem emprego e bom salário (um dos personagens é médico) e, não obstante, vê-se insatisfeito com a vida. Será? Não, claro que não. Sofrimento, mesmo imaginário, é sofrimento (ou é só soco no estômago que dói?). De mais a mais, a maior angústia dos personagens – e de tantos de nós – é o hiato que sentimos haver entre a vida que levamos e a que gostaríamos de levar.

No amor, no sexo, no trabalho, na família, talvez até na amizade, quantos de nós não percebem um descompasso entre o que somos e o que poderíamos ser? E quem, percebendo esse descompasso, não sente um desejo sôfrego pela vida? Um ímpeto de correr como um cavalo? De pular no abismo? De se jogar no mar, até de beber da sua água, como se assim incorporássemos o infinito que almejamos? Um impulso para ser o que não somos e que, ao mesmo tempo, sentimos como sendo nosso eu mais verdadeiro?

A angústia dos personagens que, como nós, buscam uns viajar pelo mundo, outros ater-se ao trabalho, uns prender-se às miudezas do cotidiano, outros à espera da amada, é a uma angústia trágica porque decorre de uma cisão: nunca chegaremos a ser aquilo que não somos e que gostaríamos de ser. O nosso eu verdadeiro, a felicidade, a vida realizada não passam de ilusão. Sofremos, portanto, em primeiro lugar e acima de tudo, por causa da imaginação, por propormos a nós mesmos ideais inalcançáveis, frente aos quais nossas vidas se revelam mesquinhas; nossas vivências, menores.

Somos todos homens e mulheres partidos, partidos por nossas próprias mãos e tanto mais quanto somos assombrados pela morte, pela consciência do tempo que nos falta e faltará. Desejamos ardentemente a vida e, assim, somos consumidos pela angústia e pela culpa por não sermos o que cremos ser. Alguns de nós chegam ao desespero e tal é a sede pela vida, pela vida em máximo grau, que o suicídio torna-se tentador (Cioran: é preciso estar ávido pelo absoluto para considerar o suicídio). Como o 0 e o 360, o impulso pela vida encontra-se com o desejo pela morte.

Na nova peça da Cia Luna Lunera, nenhum dos personagens se mata, mas todos bem poderiam ter se matado ou flertado mais claramente com a morte, como o médico. A angústia, a dilaceração pela distância entre a vida vivida e a vida almejada, entre o que eu sou e o que eu supostamente poderia ser, dá o tom da montagem e leva à pergunta: há saída?

Nos minutos finais do espetáculo, cuja duração total é cerca de uma hora e quarenta, os personagens parecem encontrar uma alternativa. No ápice da angústia, quando nada mais parece fazer sentido, ocorre uma guinada afirmativa – um Sim à vida – capitaneado pelo médico, o personagem mais assombrado pela morte (Hölderlin: onde mora o perigo, cresce também a salvação). O final da peça é uma epifania, quase uma redenção, mas que está longe de se reduzir a uma apologia do prazer. “Prazer”, o nome que foi dado ao espetáculo, pode levar a engano quem não percebe que querer uma vida sem dor é querer o impossível e querer o impossível é negar a vida.

Não, não nos livraremos da angústia se nos casarmos ou, pior, se nos esbaldarmos nos prazeres. Nada disso adianta. Se há alternativa que não seja a morte, é aceitar a vida como um todo e saber dançar conforme a música, se entregar à chuva – do céu ou de mangueira – quando molhar-se é inevitável.

2 comentários:

  1. não vi e provável não verei a peça, gostaria. aí mais uma das coisas que ficam no hiato entre a vida que levo e a que gostaria de levar... adoráveis palavras, como sempre aliás, flávio querido, dura e angustiante reflexão... mas, é preciso ter força e graça, como já dizia o cantador!

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  2. oi Marcelo
    só hoje vi esse seu texto sobre nossa peça!
    enviei o link pra todos do grupo!
    que riqueza ter acesso à sua leitura! muito obrigado por compartilhar seu olhar!
    um abraço

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