quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Duas variações sobre "Aqueles Dois"



É raro uma representação cinematográfica ou cênica superar a obra literária que lhe serviu de inspiração. A meus olhos, contudo, esse parece ser o caso da peça Aqueles Dois da Cia Luna Lunera baseada no conto homônimo de Caio Fernando Abreu. Os quatro atores, num jogo cambiante de personagens, condensam e potencializam a narrativa do drama entre Raul e Saul, funcionários recentemente admitidos numa repartição, jovens adultos que se encontram graças ao acaso de terem se tornado colegas de trabalho. Tal como o conto, a peça é um retrato do amor, mas de um amor contido e transbordante entre dois homens que, tolhidos pelas convenções sociais e pelo medo – tão humano – de se entregar, constroem aos poucos e solidamente uma relação singular. Alquimia incomum, eles transmutam o impulso erótico numa amizade apaixonada (numa paixão amiga, se assim quisermos), cujo traço mais marcante é o desejo ardente que em momento algum se mostra de modo explícito. Sob o manto da amizade, dessa amizade apaixonada, movimenta-se um magma incandescente que jamais encontra erupção.

O meu amor faísca na medula, / pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse./ É todo fome e eis que repele a gula.
Carlos Drummond de Andrade

Para travarem contato, Raul e Saul se valem de subterfúgios laborais (saudações protocolares, a hora do cafezinho, a dúvida sobre um documento); por meses e meses, o vínculo entre eles se faz submetido às formalidades do trabalho, mas não há nunca fingimento, dissimulação – nem entre si, nem perante os colegas. O que se vê é antes prudência, talvez medo ou vergonha, porque ambos sabem da grandeza do que se promete sem saber, todavia, como torná-la realidade. Felizmente, por um novo acaso, agora uma bebedeira numa festa de aniversário de uma colega de serviço, quebra-se o gelo entre eles, que, pouco depois, se dão o direito de trocar telefones. A essa altura Raul e Saul já não podiam suportar a distância que separava as sextas das segundas-feiras (ó eternidade dos finais de semana!): os dias de descanso decorriam em meio à fantasia solitária – mutuamente solitária, aliás – daquilo que um dia poderia vir a ser. Não tardaram, portanto, as trocas de presente, as visitas, as confidências sobre as próprias vidas; tudo, no entanto, sem qualquer contato físico, afora os apertos de mão e abraços amistosos. Não tardaram também os cochichos dos colegas de trabalho, os risinhos de canto de boca, a reprovação daquela amizade apaixonada. Sim, havia preconceito, mas havia muito mais: acerca de Raul e Saul, havia a consciência do amor pulsante e latente que os unia, do encontro entre duas almas. Para os infelizes, o que poderia ser mais intolerável?

Rosa. Rosas. A primeira cor.
Rosas que os cavalos / esmagam.
Orides Fontela