
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Citação III: Almuhassin Attanúkhi
– Ó Abu Umar! Quanto pagou por essa túnica?
O juiz respondeu:
– Duzentas moedas de ouro.
O vizir disse:
– Mas eu comprei esta capa e esta túnica que está por baixo dela por vinte moedas de ouro.
O juiz Abu Umar respondeu rapidamente, como se já tivesse planejado a resposta:
– O vizir – que Deus o fortaleça! – embeleza as roupas que usa, não necessitando de excessos no vestir. Todos sabem que ele tem condições de desprezar essas coisas. Nós, porém, nos embelezamos com as roupas e necessitamos de excesso, uma vez que nos envolvemos com o populacho e com pessoas a quem devemos muito respeito, e diante das quais devemos manter a compostura.
Foi como se ele tivesse enfiado pedras na boca do vizir, que o deixou em paz.
[Excerto de Almuhassin Attanúkhi (séc. X) Palestras agradáveis e notícias memoráveis Trad. Mamede Mustafá Jarouche]
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Atentada Tradução V: La Rochefoucauld
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Do Desejo por Homero
Hoje, muito mais que ontem, vivemos como se o anonimato fosse desprezível e tentamos a todo o tempo e a qualquer custo angariar a atenção de quem nos cerca. A vida simples e comum, que é a vida da maior parte de nós, foi taxada de ingênua e entediante, de comezinha. Por causa disso, nos aventuramos pelo dia-a-dia com ares de desbravador ou príncipe, quando na verdade apenas fantasiamos a vida ordinária em conformidade com a ilusão com que pretendemos nos enaltecer. Relutamos em ser pessoas comuns.
Vivemos como se fosse preciso ser grande e célebre, como se tivéssemos de redimir o cotidiano, donde o ímpeto para transfigurarmos a nós mesmos em personagens que não somos, inflarmos nossas ações em feitos que jamais faremos. Queremos que nossa história seja memorável, que nossa vida seja uma epopéia, mesmo se não passa de uma presepada.
Vivemos sem saber que extraordinário é ser simples.
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Perdoando os Pais
Pergunto-me se podemos esgotar a infância, se é possível nos tornarmos plenamente adultos. É esse, aliás, o nosso desejo? O que é envelhecer? Qual a finalidade dessa metamorfose a que tempo nos obriga? Além da morte, confronto eterno e próximo, o que a madureza nos impõe?
Desilusões, arrisco-me a responder. Boas e más, grandes e pequenas, incontáveis desilusões. Para servir de exemplo, tomemos apenas uma, talvez a mais pueril, certamente a mais radical: a idealização dos pais. Na infância, imaginamos que são infalíveis, não temos olhos para suas imperfeições, as quais mais cedo ou mais tarde passamos a enxergar, muitas vezes de modo implacável. Reconhecer a finitude de nossa mãe, de nosso pai, eis o desencanto fundamental.
Difícil é admitir que reconhecer-lhes a humanidade não faz com que esqueçamos tudo que supostamente nos teria faltado, não alivia a memória dolorosa das falhas cometidas. O desencanto, lamentavelmente, é incapaz de apagar as cicatrizes. No entanto, ao pensá-los como realmente são, um homem e uma mulher, atingimos o patamar necessário para reavaliar fatos e fantasias. Quem sabe assim, amadurecidos, nos faremos capazes de perdoá-los, quem sabe assim nos permitiremos eximi-los da culpa que insistimos em lhes atribuir, como se ainda fôssemos crianças.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Dos Mapas e Esculturas
Em todos esses anos, e lá se vão muitos, com raras exceções voltei aos antigos cadernos. Quando o fiz, buscava um poema esquecido ou outra ninharia qualquer, pois a curiosidade nunca foi forte o suficiente para me fazer repassar as centenas de páginas manuscritas guardadas no alto do armário. Sei que elas jamais me servirão para exaurir os detalhes das trilhas psíquicas que percorri, mas suspeito que podem me fornecer boas pistas daquilo que outrora senti e pensei, daquilo que fui e talvez não seja mais. Creio deter uma cartografia íntima.
O verdadeiro sentido da introspecção, porém, não é acumular conteúdos para biografia, assegurar dados para uma futura expedição. Ao inventariar as experiências, quero antes entender-me e fazer-me o melhor que posso. O esforço de auto-compreensão nada mais é que uma contínua composição do próprio eu. Escrevendo, busco talhar e elaborar a matéria de que sou constituído com o ímpeto de quem esculpe a si mesmo, obra sempre inacabada. A palavra é o cinzel com que trabalho a página em branco, mais dura que a rocha.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Atentada Tradução IV: Blaise Pascal
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Memento Mori
É curioso como nosso pensamento vagueia. Às vezes, a partir de uma questão banal, somos transportados para terras longínquas. Pensando sobre o bolo e todo aquele açúcar, ocorreu-me o que um tio sarcástico dissera-me há anos a propósito de minha recusa em comer bobagens: “Você vai morrer com saúde!” ou, o que dá na mesma, “Você será o defunto mais saudável do cemitério, parabéns!” É um comentário espirituoso, reconheço, mas menos pela crítica à dieta (na verdade, nada além da exclusão de excessos) do que pelo apelo à morte. Sabemos que todos morreremos, mas será que, tendo a morte como perspectiva, estamos autorizados a fazer qualquer coisa?
São Paulo ou simplesmente Paulo, a depender da fé, possui uma frase extraordinária: “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.” (1 Cor 15:32) Destaca-se aí o pressuposto de que, se a vida não possui um sentido maior, dado neste caso pela crença religiosa, resta-nos aproveitar ao máximo os dias que temos sobre a Terra realizando todo e qualquer desejo. Carpe diem! Séculos depois, a partir da leitura de Dostoievski, Sartre haveria de formular uma interrogação que toca no mesmo problema: “Se Deus não existe, tudo é permitido?”
É impressionante como a morte regula nossas ações, quer pelo medo do que virá depois, quer pelo fato de representar o fim absoluto, móbil esse muito mais persuasivo, já que ninguém sabe se de fato existe o post mortem. Mas é impressionante também como normalmente evitamos pensar na morte, valendo-nos dela apenas em momentos oportunos, em especial quando nos falta coragem para tomar uma decisão. Ponderamos: “A vida é curta e está sempre por um triz. E se eu morrer amanhã?” Assim angariamos forças para mudar de emprego, pedir perdão ou dizer ‘te amo’. Quem sabe ainda para cometer loucuras ou pequenos pecados. É inegável: a morte nos incita ao ato. Será, porém, que justifica tudo? Até comer uma fatia de bolo?
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Citação I: Orides Fontela
Ao meio-dia a vida
é impossível.
A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.
A luz é demais para os homens.
(Porém como o saberias
quando vieste à luz
de ti mesmo?)
Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.
sábado, 12 de setembro de 2009
Quase diário
Sabe, amigo, um repente e tudo esfacela-se? A saudade retumbante no peito, a alma sem ânimo, o enfado infinito? E uma angústia sem estridência? Só a ânsia pelo retorno – ao nada? a Minas? ao mito?
Sabe, amigo, o desejo de olhar para trás e virar estátua de sal? O colo que não existe? Acontece, não é verdade? A vontade de matar o vizinho, o ruído que não cessa? O inimigo dentro de nós?
Sabe, amigo, digo a mim mesmo que preciso ter paciência, que vai passar. Digo como dizia à minha avó, sete anos de luta contra o câncer.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Maturidade
para mais um dia de terrível calor.
É verão e a praia está distante,
embora não tanto quanto a juventude.
– Tornei-me homem!
Os amores de mar passaram,
passaram os veraneios e as horas vãs,
passaram os anos de aventura e risos.
– Ao menos trabalho sem grandes pesares.
Levanto-me para restaurar o presente.
A mesa está posta como sempre esteve.
O pão, o café que mal tomo,
a bolacha doce de chocolate ruim.
Em poucos instantes, terei de sair
e fingirei que tudo está bem,
adulto maduro que sou.
Mais tarde, quando ao meio dia o sol estiver a pino,
farei meu almoço de arroz com feijão
e ovos estalados à moda escrava.
Sentarei à mesa, porei farinha no meu prato,
e mastigarei um pouco do passado,
degustando o amargo desta prisão,
nostalgia.
De noite, chegado em casa para o sono,
acabarei enfim por me despir
antes de deitar-me em silêncio na cama de velhos sonhos.
É preciso dormir.
Estou nu frente à memória
e não posso amá-la.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Motivo para o Rubor, Razão para Sorrir
B., permaneço espantado e contente com suas palavras. Muito obrigado por tê-las formulado e trago à luz, mesmo tendo se passado cerca de três meses desde o final do semestre. Confesso que elas me tocaram profundamente. Obrigado também por ter permitido a reprodução da postagem originalmente publicada no Insistência Insone. Como vários amigos e amigas acompanham o Armadura de Vento, aprouve-me, sem maiores intervenções de minha parte e em que pese a timidez, compartilhar essa alegria, esse motivo para o rubor, essa razão para sorrir.
QUARTA-FEIRA, 19 DE AGOSTO DE 2009
"Ousadias de fim de semestre".
Querido professor, lhe trago esta maçã mais como uma oferta de Lilith que como um agrado. A maior parte das coisas que você lerá nas próximas linhas em nada lhe acrescentará, mas, ainda assim, elas esperaram o semestre inteiro para sair de mim. Digo-as apenas aqui, covardemente escondida por trás das teclas que impedem que fiquemos os dois ruborizados e fugitivos cara-a-cara (ficaremos, inevitavelmente, mas sem precisar assumir um para o outro, então). Há um tipo de brilho em seus olhos que poucas vezes vi noutros (se é que já vi), é um misto de sagacidade e meninice com mais alguma coisa indefinida que faz com que pareçam desmontar constelações inteiras num breve piscar. São olhos de alma. Não, não olhos 'da alma', olhos DE alma. Tem pessoas que quando nos olham parecem estar absolutamente ocas, como se nada do que viveram houvesse ocupado qualquer espaço em seu olhar, você não. Você tem olhos tão cheios, tão cheios, que a alma inteira parece ter se depositado naquele ponto de luz que eles emitem enquanto você divaga sobre umas boas ironias filosóficas. Há também, sem nenhum respeito, um tanto de erotismo neles. Por que? Onde? Como? Eu não sei de onde vem, mas que há, -pelos céus!- há, e é mais do que o suficiente e o saudável para nós, pobres mortais que o cercamos.
Sem falar no quê de teatralidade, que me diverte e prende, em seus movimentos. E no distanciamento ético que faz com que todos esses meus pensamentos soem meio ridículos e fora de contexto. Além disso tudo, para fazer par com os olhos, o sorriso às vezes o faz parecer um menino travesso que acaba de aprontar uma armadilha e só está esperando que alguém caia nela. Tem as mãos bonitas também, muito, muito brancas, e sandálias de couro (*-*).
Mas, apesar de todos os atributos encantadores acima citados, tem uma coisa que chama ainda mais atenção e eu juro que não vou falar do sotaque (hahaha). É a aura de paixão que o encobre quando se perde em uma linha de raciocínio sem perceber que carrega uma sala inteira junto.
Então, senhor Marcelo, perdoe-me a ousadia, mas tu, com tuas viagens, foste um dos meus poucos motivos para acordar sorrindo às quartas e sextas por um semestre inteiro.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
O Palco e o Peito
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Adélia Prado - Poesia e Humanização
pra Alline, irmã
Apenas muito tardiamente a literatura entrou em minha vida. Tinha 18 anos, passara há pouco no vestibular e me inquietava com minha ignorância. Pensava que um universitário e futuro administrador de empresas não podia ser tão inculto como eu era e impus-me a leitura de algumas obras, de cujo conteúdo não me restou uma gota, lidas como foram por puro constrangimento, mais como exercício da memória que do espírito.
Felizmente, porém, naquele mesmo período em que me abria à leitura, coisa até então odiada, topei com uma obra que descortinou o valor e o prazer da literatura: Cacos para um Vitral de Adélia Prado. Como nunca antes, senti que a leitura poderia iluminar minha própria vida, permitindo-me compreender melhor a mim e o mundo. Tocado pela beleza daquela prosa poética, sofri uma conversão que, só agora percebo, eu sempre desejara. Não tardou para que eu abandonasse a graduação que iniciaria e partisse para as humanidades a fim de trilhar um outro curso profissional e existencial. Inevitavelmente, caíra por terra o imperativo exterior que me constrangia à formação de uma pátina de cultura, dando lugar a um móbile íntimo e genuíno.
É impossível dimensionar o quanto a leitura modificou-me, pois, a rigor, deveria falar em renascimento, não em modificação. Contudo, na ausência de termos precisos, permito-me dizer que penetrei num novo universo a partir do qual a antiga vida mostrou-se insignificante, dado que menos bela e desafiadora. Descobri o quanto andamos cegos, olhos cheios de escaras. Não enxergamos a poesia, a beleza feliz e triste, que perpassa o dia-a-dia. À Adélia Prado devo essa e muitas outras descobertas. Devo-lhe ainda um entusiasmo que vez por outra se apossa de mim, vivo como uma flama, irrupção da verdade fundamental que a poeta encarna: a poesia está no cotidiano – porque no cotidiano está o divino.
PS: O vídeo da Adélia pode ser visto ou baixado no site do "Sempre um Papo".
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Atentada Tradução III: Michel de Montaigne
[B] dum abest quod avemus, id exuperare videtur
Caetera; post aliud cùm contigit illud avemus,
Et sitis aequa tenet.
[Tant qu’il nous échappe, l’objet de notre désir nous paraît toujours préférable à toutes choses ; venons-nous à en jouir, un autre désir nous naît, et notre soif toujours est égale. (Lucr., III, 1095)]
[A] Quoy que ce soit qui tombe en nostre connoissance et jouïssance, nous sentons qu'il ne nous satisfaict pas, et allons beant apres les choses advenir et inconnues, d'autant que les presentes ne nous soulent [rassasient] point: non pas, à mon advis, qu'elles n'ayent assez dequoy nous souler, mais c'est que nous les saisissons d'une prise malade et desreglée,
[B] Nam, cùm vidit hic, ad usum quae flagitat usus,
Omnia jam ferme mortalibus esse parata,
Divitiis homines et honore et laude potentes
Affluere, atque bona natorum excellere fama,
Nec minus esse domi cuiquam tamen anxia corda,
Atque animum infestis cogi servire querelis:
Intellexit ibi vitium vas efficere ipsum,
Omniaque illius vitio corrumpier intus,
Quae collata foris et commoda quaeque venirent.
[Car il vit que les mortels ont à leur disposition à peu près tout ce qui est nécessaire à la vie ; il vit des hommes gorgées de richesses, d’honneurs et de réputation, fiers de la bonne renommée de leurs enfants ; et pourtant il n’en était pas un qui, dans son for intérieur, ne fût bourrelé d’angoisse, et dont le cœur ne fût oppressé de plaintes douloureuses : il comprit alors que le défaut venait du vase lui-même, et que ce défaut corrompait à l’intérieur tout ce qui du dehors on y introduisait de bon. (Lucr., VI, 9)]
[A] Nostre appetit est irresolu [indécis, indéterminé] et incertain: il ne sçait rien tenir, ny rien jouyr de bonne façon. L'homme, estimant que ce soit le vice [défaut] de ces choses, se remplit et se paist d'autres choses qu'il ne sçait point et qu'il ne cognoit point, où il applique ses desirs et ses esperances, les prend en honneur et reverence: comme dict Caesar, « communi fit vitio naturae ut invisis, latitantibus atque incognitis rebus magis confidamus, vehementiusque exterreamur. » [Il se fait, par un vice ordinaire de nature, que nous ayons et plus de fiance, et plus de crainte des choses que nous n’avons pas veu, et qui sont cachées et inconnues. (Traduction que donne Montaigne dans les éditions de 1580 et de 1588, César, De bello civili, II, iv.)]
[A] Se às vezes nos ocupássemos em nos observar e se empregássemos a sondar a nós mesmos o tempo que dispensamos a controlar os outros e a conhecer as coisas que estão fora de nós, sentiríamos facilmente como toda esta contextura [este composto de que somos formados] é construída de peças frágeis e falhas. Não é um singular testemunho de imperfeição não poder assentar nosso contentamento em coisa alguma e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora de nosso poder escolher o que nos é preciso? Disso oferece um bom testemunho a grande disputa que sempre houve entre os filósofos para encontrar o soberano bem do homem e que ainda dura e durará eternamente, sem resolução e sem acordo:
[B] dum abest quod avemus, id exuperare videtur
Caetera; post aliud cùm contigit illud avemus,
Et sitis aequa tenet.
[Enquanto nos escapa, o objeto de nosso desejo nos parece sempre preferível a todas as coisas. Quando dele fruímos, nasce em nós um outro desejo e nossa sede é sempre igual. (Lucrécio Da Natureza das Coisas III.1095)]
[A] O que quer que caia em nosso conhecimento e fruição, nós sentimos que não nos satisfaz e vamos boquiabertos atrás das coisas futuras e desconhecidas, já que as presentes não nos satisfazem: não, assim vejo, que não tenham o bastante para nos satisfazer, mas é que as pegamos com uma mão doente e desregrada,
[B] Nam, cùm vidit hic, ad usum quae flagitat usus,
Omnia jam ferme mortalibus esse parata,
Divitiis homines et honore et laude potentes
Affluere, atque bona natorum excellere fama,
Nec minus esse domi cuiquam tamen anxia corda,
Atque animum infestis cogi servire querelis:
Intellexit ibi vitium vas efficere ipsum,
Omniaque illius vitio corrumpier intus,
Quae collata foris et commoda quaeque venirent.
[Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição quase tudo que é necessário à vida; viu homens empanturrados de riquezas, de honras e de reputação, orgulhosos do bom renome de seus filhos e, contudo, não havia um que, em seu foro interior, não estivesse atormentado de angústia e cujo coração não fosse oprimido por queixas dolorosas. Ele compreendeu então que o defeito vinha do próprio vaso e que esse defeito corrompia pelo interior tudo que de fora lhe era introduzido de bom. (Lucrécio Da Natureza das Coisas VI.9)]
[A] Nosso espírito é irresoluto e incerto: ele não sabe nada reter nem nada fruir adequadamente. O homem, pensando que se tratasse de falha nas coisas, encheu-se e nutriu-se de outras coisas que ele não sabe e que não conhece, nas quais imprime seus desejos e suas esperanças, tomando-as com honra e reverência. Como diz César, “communi fit vitio naturae ut invisis, latitantibus atque incognitis rebus magis confidamus, vehementiusque exterreamur.” [Acontece, por um vício ordinário da natureza, que tenhamos mais confiança e mais medo das coisas que não vimos e que estão ocultas e desconhecidas. (César De bello civili II.iv – tradução feita por Montaigne nas edições d’Os Ensaios de 1580 e de 1588.)]
sábado, 1 de agosto de 2009
Potó
Grandinhos, médios, pequenos, minúsculos; nojentos, curiosos, coloridos; voadores, terrestres, aquáticos; silenciosos, sorrateiros, barulhentos, estridentes; fedidos e inodoros; lentos, rápidos, intrépidos; inofensivos, chatos, ameaçadores – longevos, adaptáveis e incrivelmente diversos, que outro grupo do reino animal foi criado com tamanho esmero?
Há alguns meses, tive a oportunidade de tomar conhecimento de um dos constituintes desse verdadeiro universo: o potó. Na ocasião, uma amiga apontou-o como causa de umas bolhas que lhe apareceram na perna. Surpreso com a magnitude do estrago, pedi que o descrevesse, dado que nunca ouvira falar daquele bicho. Achei o relato estranho porque o inseto, dito terrível, seria diminuto. Deve ser troça, pensei. Chegando em casa, recorri ao Aurélio para orientar-me e descobri que era verdade, mesmo não obtendo uma confirmação de seu tamanho.
Potó [Do tupi.] Substantivo masculino. 1. Bras. Amaz. Zool. Inseto coleóptero, estafilinídeo, gênero Paederus, cuja secreção, de propriedades cáusticas e vesicantes, produz lesões na pele, como eritema, prurido, vesiculação e ulceração, às vezes extensas e numerosas, rebeldes ao tratamento. [Sin.: potó-pimenta, pimenta, papa-pimenta, burrico, trepa-moleque.]
A descrição é técnica, mas podemos inferir o fundamental. Só faltou dizer quanto tempo as lesões levam para melhorar. Nada posso garantir, mas ouvi dizer que, dependendo da extensão e da localização, pode custar até três meses. Por experiência própria, já que acabei por não escapar de uma sorrateira investida, atesto que minha queimadura, surgida ao esmagar um na nuca enxugando-me após o banho, levou quase dois meses para desaparecer. E como ardia!
Tal qual a imagem deixa entrever, o potó mede cerca de dois centímetros, se é que chega a tanto. Seu estrago é imenso e inversamente proporcional ao tamanho. Uma verdadeira desmesura: por que tanto poder para animal tão insignificante? Arrisco-me a dizer que Deus errou feio ao criar os insetos e especialmente, ainda mais do que a barata e o barbeiro, o potó. Deus, contudo, não deve ser culpado desse erro terrível, pois tem uma boa desculpa: a de não existir.
PS: Ou, quem sabe, a de atazanar os descrentes.
sexta-feira, 24 de julho de 2009
De como entender Zezé di Camargo & Luciano
Certa vez, acompanhei uma entrevista com a dupla Zezé di Camargo & Luciano. Do que disseram, ficou apenas uma mísera lembrança. Interrogado sobre o critério de qualidade de suas composições (certamente a pergunta foi feita noutros termos, mas asseguro não trair o sentido), Zezé saiu-se com uma resposta direta: o arrepio. Quando uma composição o toca a ponto de arrepiá-lo, eis então uma canção boa. (Observo, porém: não consegui detectar se “boa”, naquele contexto, significava “de sucesso de público”.)
Achei curioso o meio por ele descoberto para avaliar suas próprias composições. E isso porque nada do que eles fizeram, ou melhor, nada do que conheço que fizeram causou-me a menor comoção. Nunca achei que retratassem satisfatoriamente qualquer vivência com a qual pudesse me identificar.
Tempos depois, pensando sobre o resquício que me ficou daquela entrevista, dei-me conta de que a expressão de meus sentimentos se faz a partir de referenciais distintos. A fórmula de meus amores e dores, a manifestação de minha angústia, o lamento pelos desencontros – choro e rio por meio de outras palavras e ritmos, foi o que concluí. Minha sensibilidade pinta-se com outros tons e é por isso que minha vivência encontra melhor representação por meio de outras vozes, quando não apenas pelo silêncio.
Ouso pensar que há formas mais ou menos sofisticadas do sentir e do exprimir-se, mas não tenho cacife para elevar essa opinião a um estágio fundamentado. Em todo caso, reconheço a existência de outras expressões da sensibilidade e me parece ser essa a razão do sucesso disso que ora se chama sertanejo (totalmente desvinculado do que o sertão de fato é). Tenho como inegável que Zezé di Camargo & Luciano conseguem comunicar-se com um grande público, traduzindo e formando uma sensibilidade comum e que ocorre de não ser a minha. Sinceramente acredito que Zezé, autor de várias das canções da dupla, tenha sido verdadeiro quando disse que seu critério de composição é o arrepio. Tendo inclusive a estar de acordo. O que nos diferencia é seu significado. Num caso, emoção. Noutro, indulgência.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Critério Tristeza
Insinuações já ouvi de que se trata de doença, leviandade dificilmente igualável. Há quem diga que sou melancólico, classificando meu humor ao modo dos antigos, que haveriam de atribuí-lo à bile negra. De minha parte, não almejo explicá-lo de maneira definitiva, porquanto parece-me claro que a vida – mesmo quando verdadeiramente feliz – comporta um traço de dor.
Vivemos, contudo, um tempo em que é imperativo ser feliz, tempo no qual a alegria se configurou num manto ostensivo e opressor. Tornou-se obrigatório aparentar contínua felicidade e suspeito haver tolos que se julguem realmente bem-aventurados, por certo os mesmos que concebem a tristeza como patologia. Farsa, auto-engano, caráter infantil, superficialidade. Muitas palavras poderiam designar tal ilusão.
De meu temperamento, do qual colho frutos ora mais, ora menos interessantes, extraí um metro que faço questão de manter a mão: a radical desconfiança dos que nunca se entristecem. Desconfio de que tais pessoas sejam incapazes de travar conversas íntimas e aprofundadas uma vez que menosprezam a introspecção, às custas da qual tentam inscrever em seus rostos um sorriso que não lhes pertence. E como conviver com quem vive envolto na névoa da felicidade contrafeita?
Permito-me estar convicto, a despeito de qualquer rasgo melancólico, de que existem pessoas às quais não cabe partilhar minha intimidade. Metro em punho, distingo-as recorrendo à tristeza, pois sei que quem desconhece a dor não tem meios para me compreender.
terça-feira, 14 de julho de 2009
Atentada Tradução II: Ángel González
El otoño se acerca con muy poco ruido:
apagadas cigarras, unos grillos apenas,
defienden el reducto
de um verano obstinado en perpetuarse,
cuya suntuosa cola aún brilla hacia el oeste.
Se diría que aquí no pasa nada,
pero un silencio súbito ilumina el prodigio:
ha passado
un ángel
que se llamaba luz, o fuego, o vida.
Y lo perdimos para siempre.
O outono se aproxima
O outono se aproxima com muito pouco ruído:
apagadas cigarras, uns poucos grilos,
defendem o reduto
de um verão obstinado em perpetuar-se,
cuja suntuosa cauda ainda brilha no oeste.
Há quem diga que aqui não passa nada,
mas um silêncio súbito ilumina o prodígio:
passou
um anjo
que se chamava luz, ou fogo, ou vida.
E o perdemos para sempre.
quarta-feira, 8 de julho de 2009
Desnorteando
pra Bárbara, batuque e garra
Acompanho vários amigos e conhecidos partirem para a Europa ou Estados Unidos a trabalho ou estudos. Sempre com orgulho e certas vezes soberba, vejo-os organizar a mudança e freqüentemente acalentar a expectativa de fincar pé nas bandas de lá. Tudo corre como se tivessem encontrado a chance de habitar o centro do mundo – “onde tudo acontece” – e pudessem enfim tomar parte no que há de mais contemporâneo em todo o planeta. Nas festas de despedida não é incomum entrever um misto de admiração e inveja por parte dos que permanecem. Parece-me que vários dos que ficam nutrem o mesmo desejo de “conhecer o mundo”, ainda que muitas vezes esse ‘conhecer’ signifique pouco mais que deslumbrar-se e o ‘mundo’ mal se estenda além do Mediterrâneo e dos Urais.
Reconheço as possibilidades que alguns dos países do norte oferecem. Reconheço também a ambivalência dessas possibilidades, sempre crivadas pela pecha de estrangeiro, quando não pelo opróbrio xenófobo. Só não entendo o frisson causado por Roma, Nova York, Berlim e companhia limitada. Desconfio que, tal como nos centramos no sudeste do Brasil e na zona sul de duas de suas capitais, centramo-nos também no velho continente e na América (América?) como se fosse um referencial irredutível, para não dizer redentor. Crianças, é como se fosse preciso nos submeter a um rito mágico, estranho e estrangeiro, para adentrarmos a idade adulta. Queremos ser modernos, pós-modernos, bem-sucedidos, antenados (sabe-se lá mais o quê) e agimos como se apenas no exterior pudéssemos atingir tal status. Olhamos nossa terra como arcaica ou rudimentar, donde o desejo de deixá-la, nem que seja temporariamente. Mendigamos bênçãos alheias ao invés de, aqui e agora, fazer acontecer.
É fato: ainda estamos colonizados e nos comportamos como se viver em nossa pátria fosse viver em degredo. Pode parecer estranho, mas é preciso descobrir o Brasil.
terça-feira, 23 de junho de 2009
Atentada Tradução I - W. Busch
But too empty and too trite.
What I look for is a clue
To some matters not so light.
1ª
Dois vezes dois é quatro: verdade
Mas muito vazio e insosso.
O que procuro é uma chave
Pra assuntos menos tolos.
2ª
Dois e dois são quatro: maravilha!
Mas por demais vazio e irrelevante.
O que procuro é a trilha
Pra paradas mais fascinantes.
3ª
É verdade: duas vezes dois é quatro
Mas demasiado vazio e estável.
O que procuro é ser apto
Pra matéria mais volátil.
4ª
Dois e dois somam quatro: é isso!
Porém fútil e inerme.
O que procuro é saída
Pra guerra não tão leve.
5ª
Duas vezes dois é quatro: duvida?
Mas é oco e sem graça – e muito.
O que procuro é partida
Pra onde eu não sei: pro mundo?
6ª
A matemática é certa: se vê
Pena ser fácil – que tédio!
O que procuro? Morrer
Pra tudo que é sério.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
António Alçada Baptista

domingo, 7 de junho de 2009
Liberdade
saudosa escola de saudosos alunos
– Libérrimo!
– Podes fazer o que quiseres?
– Tudo!
– Voa, então, ó ser terrestre, recorta o céu como uma águia!
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Eterno Sísifo
terça-feira, 26 de maio de 2009
Soneto do Desencontro
Faltos de arte: desta, a do encontro, e de quantas mais?
2º Quarteto
Faltos da arte? Sim, mas somente em parte.
1º Terceto
A emenda? A sorte. Ou a arte virou sua consorte?
2º Terceto
Verdadeira e falsa verdade – quantas peças nos pregam suas faces?
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Circo Interior: Domador
e, de novo, pro Daniel
sábado, 16 de maio de 2009
terça-feira, 12 de maio de 2009
Decantar, eu decanto
também pra Nana, linda
et pour Marie, rêve irréalisable
Mais tarde, tive de ater-me com outros sentimentos, como ódio, inveja e agradecimento, que brotaram em mim como fruto de novas experiências e reflexões. Acontece que com o passar dos anos não apenas clarificam-se os estados de nosso ânimo, a força ou fraqueza de nosso espírito, mas cristalizam-se as vivências mais marcantes, aquelas que fulguram na memória e insistem em ressoar no peito. Com freqüência têm caráter extremo: morte, amor, separação. Entretanto, podem ser marcantes simplesmente pela beleza e gratuidade, em nada menos radicais que o luto, a entrega ou a ruptura. É o caso de pequenos atos, como uma mão estendida, um convite inesperado, um olhar silencioso. Contudo, também é o caso dos encontros fortuitos que se consolidam em amizades e perpetuam-se no tempo, sobrevivendo à distância e sobrepujando ausências. Simultaneamente leves e consistentes, trazem em si o selo do sublime.
Ressalto a beleza desses encontros, fugazes e memoráveis, inexplicáveis como o acaso, cuja espontaneidade é desconcertante. Graças a qual encantamento entrelaçam-se pessoas desconhecidas em laços fraternais? Por quais secretos motivos a afeição que de tais laços emerge consegue atravessar longas latências mantendo vivo o desejo do reencontro, inevitavelmente efêmero e talvez impossível? Onde está a raiz dessa ligação, do vínculo imune ao oblívio? Por que será que não fenece? Que singular ferida é essa, que, sem deixar cicatriz, mantém-se à flor da pele? Há nome para amizade dessa estirpe?
Tais encontros nascem como que do nada e, quando nos damos conta, já são adamantinos. Duram um átimo, voláteis que são, mas impõem-se como um monumento. Podem surgir num veraneio, numa visitação a museu ou biblioteca, sabe-se lá onde mais. Certo é terem um calor intrínseco que impede de extinguir-se a flama do afeto. É algo impremeditado, inverossímil e, no entanto, real. O anseio é de que se repitam, mas inexiste exatidão quanto ao momento em que isso acontecerá, se é que acontecerá. É incalculável o dia em que as rotas se cruzarão novamente.
Passados meses de absoluto afastamento e silêncio, às vezes mais de ano, o reencontro, quando se dá, reluz – extáticos, olhamo-nos nos olhos, medram as lembranças e o desejo de novas vivências; imersos em renitente saudade, ainda somos íntimos e estamos à vontade como se na véspera estivéssemos juntos. Magicamente, revoga-se a intermitência, unem-se passado e presente e instaura-se um tempo de exceção, que em breve será rompido por nova despedida e permanecerá tão almejado quanto nunca.
Dentre os sentimentos que os anos me proporcionaram, eis um para o qual ainda não encontrei expressão propícia, a não ser admitir que, quando a morte bater à minha porta, talvez repentinamente, não terei o direito de maldizer a vida, sabedor que sou de que esses raros encontros, insignes como são, justificam uma existência; quando se cumprir minha hora, aceitarei de bom grado e sem aventar relutância, como quem consente em descer a montanha após ter logrado alcançar o cume.
terça-feira, 5 de maio de 2009
Circo Interior: Malabaris
sábado, 2 de maio de 2009
Paz Armada
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Orfandade
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Philia
pelo que me permite ser
segunda-feira, 13 de abril de 2009
O que o vinho não faz?
Não sei dizer o que se passou com ela desde então. Será que ainda ouve Djavan? Conserva a pele rosada? Mantém as mãos macias? Haverá visitado a Alemanha para aperfeiçoar a língua que só em seus lábios sabe ser bela? Será que mora na mesma casa? Na mesma cidade? No mesmo país? Estariam vivos seus pais e irmã? Os cães? Casou-se, enfim? Tem filhos? Cria-os com delicadeza e tempo? Ensinou-os a dançar? Será que trabalha e é feliz? Será que cultiva os amigos que tínhamos? Haveria restaurado os laços com nossos desafetos? Deu voz a meus segredos? Doou meus presentes? Jogou-os no lixo? E as fotos, rasgou-as? Arrisca-se a pensar em mim? Soterrou seu (nosso, admito) primeiro amor? Quão diminuto é o lugar que ocupo em seu coração?
Sem exceção, todas essas perguntas são irremediavelmente vãs, dado que irrespondíveis. É impossível qualquer apelo. Hoje, mais que distantes, estamos afastados – no espaço, no tempo e na alma. Cultivávamos uma belíssima amizade, mas ela se desfez de chofre assim que selamos o último beijo (lembro dia, hora e local), o que me doeu terrivelmente. Era como se apenas um profundo rompimento pudesse de fato nos separar. Mas era mesmo? Manter a amizade não teria sido possível? Se éramos uma dupla muito antes de formar um par, seria realmente inviável retornar à condição de amigos? Por que desperdiçamos uma amizade tão límpida e sólida? Será que essa pérola nunca existiu?
Insisto nas perguntas vãs. Temo reconhecer que nos lançamos em ostracismo e acabamos por banir todo laço patrício. Não terá fim o exílio de nosso afeto? Nunca mais nos abrimos à alegria e surpresa que, antes de tudo, nos unira. Sequer nos vimos uma vez mais. É uma pena que o amor ou a amizade possam se desfazer como uma miragem, mesmo quando foram uma miragem verdadeira e real.
quinta-feira, 9 de abril de 2009
Outros Prazeres
domingo, 29 de março de 2009
terça-feira, 24 de março de 2009
Primordial
e o futuro enfim dormir no meu colo,
não buscarei redimir o passado
ou alentar a filha de Pandora.
Qualquer ânsia será inútil
e o espírito não conhecerá revolta.
Aceitarei o que me for ofertado
sem jamais me inebriar
ou lançar-me nos braços de Hypnos.
De bom grado me farei leviano,
amante de deuses efêmeros:
tulipas, cigarras e dança.
Incólume, a flauta sempre à mão,
desprezarei as horas sérias
cuspindo nos olhos de Chronos.
Antes, muito antes da conflagração dos séculos,
o tempo plenamente restaurado,
a eternidade habitará meu corpo,
mapa de todos os encontros,
morada ctônica de Sige e Eros.
Quando eu for criança,
e só quando for criança,
junto a meu ouro e prata porei à parte o butim de minhas guerras
e a sede oculta pelo espólio de meus inimigos.
Os mortos, todos, haverão de permanecer sepultos,
inumados em inaudita paz,
assim como o vão desejo pelo canto de Homero.
segunda-feira, 16 de março de 2009
Boletim do Sertão
Vim. É de Petrolina que enfim componho esta mensagem para contar as novas. É mesmo só para dizer como vão as coisas, passar os novos contatos, fazer os já feitos convites para uma visita.
Pernambucando há aproximadamente dois meses, apenas agora reúno condições para começar a (tentar) me sentir em casa e dar início à elaboração da mudança, esse ato de coragem – temeridade? Passados dias e dias, para mim bem longos, finalmente tenho colchão, guarda-roupa e internet! Para não falar dos parangolés naturebas que acabei encontrando numa esquina ou noutra. Mas ainda falta uma estante para os livros, os poucos que consegui trazer de beagá, e uma mesa pequena para apertar no quarto e me suster nos momentos em que preciso de recolhimento para escrever.
Assim que cheguei e até meados da terceira semana, fiquei hospedado na casa de uma prima, aquela que me falara do concurso, única pessoa da família até então desgarrada do sul-sudeste. Fui bem recebido e Al., também professora da federal, ajudou-me a tratar das questões burocráticas (exame admissional, apresentação dos documentos, posse e entrada em exercício) e iniciar a busca por um apartamento. A procura, porém, foi difícil: muitas opções ruins; poucas boas, mas caras. Ao menos neste primeiro momento, acabei desistindo de morar só e decidi compartilhar um apt com um professor da psicologia também recém-chegado. É um três quartos mediano, a vinte minutos a pé do campus de Petrolina e uns 25 do centro. Bairro tranqüilo, daqueles em que há pequenos comércios: mercearias, barbeiro, uma lavadeira/passadeira e restaurante-bar especializado em bode, com direito a espetinho de rim!, bairro daqueles em que as pessoas de noite colocam cadeiras no passeio para ficar conversando e ver o tempo passar.
(...)
O D., com quem divido o apt, é de Recife. Um cara bem animado, desses brincalhões. O chato é que acompanha a novela das oito e até big brother Brasil! Dá pra acreditar? Tomara que a tv continue com o som bem baixo para não termos um primeiro desgaste... Mas, como dizia, ele é de Recife e por isso aproveitei para ir pra lá no carnaval. E que carnaval! Não fosse a chuva, que provocou o cancelamento de alguns shows, como o do Antônio Nóbrega, o que mais queria ver, teria sido perfeito. Quero voltar no ano que vem. Quem anima? Fomos e voltamos de carro, encarando o sol do sertão e acompanhando visualmente a transição: sertão, agreste, zona da mata, litoral. No caminho daqui lá encontra-se Serra Talhada, a cidade de Lampião.
Por ora, essa morada no Caminho do Sol me basta, mas sei que ainda preciso aguardar o segundo semestre para realmente ter condições de avaliar onde será melhor me estabelecer. É que o curso de ciências sociais e o colegiado de sociais, no qual estarei lotado (na Univasf não há departamentos; os colegiados exercem dupla função), ficam em Juazeiro, já Bahia, do outro lado da ponte, o que significa que terei disciplinas a lecionar nas duas margens do São Francisco.
Existe a possibilidade, parece até que o interesse, por parte da universidade em montar novos cursos de humanas, dentre eles o de filosofia. Entretanto, sou o primeiro e por enquanto único filósofo da universidade e não consigo imaginar como conseguiria construir sozinho a proposta a ser encaminhada para o Ministério da Educação. Além disso, o que aliás é bem mais sério, não sei quanto tempo vou ficar aqui. Embora tenha acabado de chegar, acredito que posso tentar outro concurso em breve (sabendo de algo, avisem-me!) ou em cerca de oito, nove anos, isto é, depois do doutorado. Doutorado, aliás, ao qual devo dar início apenas daqui a quatro anos, quando poderei, segundo a legislação do estágio probatório, pedir o afastamento.
Mas, honestamente, tenho tentado não pensar nessas possibilidades futuras. Neste momento, já tenho coisas demais a resolver. E, afinal de contas, quem sabe não fincarei definitivamente meus pés por aqui? Depois de fazer novas amizades, será que a saudade ainda vai bater tão forte? Será que a dor não vai se atenuar?
“Minha vida tem meio-do-caminho?”
O chato por aqui, além da perda do convívio com pessoas queridas e agora distantes, é, primeiramente, a temperatura. O calor é inclemente. O sol assola sem dó: das sete às dezessete é sempre meio-dia! Em segundo lugar, a biblioteca da universidade, que é ínfima e não parece receber a devida atenção da reitoria e pró-reitorias. É claro que vai melhorar com o tempo, mas sei que parte de meu salário terá de ser dedicada a livros que, noutras circunstâncias, não compraria. Paciência. É chato também ser chamado de senhor pelos alunos e mesmo por pessoas mais velhas. Será que estou tão carrancudo assim?
Há coisas legais também, sobretudo para uma pessoa meio jeca como eu. Gosto das pessoas simples, da cidade tranqüila, das feiras de frutas e produtos da região, do ritmo mais lento, do sotaque, do rio, no qual já nadei, mas sem beber da água, com medo de que se concretize a lenda de que quem a bebe nunca mais sai de suas margens. Agrada-me também a possibilidade de estudar com calma, sem preocupação financeira, preparar-me com tranqüilidade para o doutorado e em especial a possibilidade de pensar-me, conhecer-me melhor. Estando aqui, isolado de muitas coisas e pessoas importantes, às vezes tenho dias de extrema nostalgia. Queria até voltar a fazer análise, mas parece que não há nenhum bom psicanalista fora do círculo universitário.
“O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enriquecidas com muita astúcia: um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação.”
As aulas começaram e estou com três turmas. Uma é de Filosofia para Administração; outra, de Bases Filosóficas da Psicologia; a terceira, por mim sugerida, aborda Hipócrates e a Medicina Antiga. As duas obrigatórias estão cheias como de praxe; a eletiva tem 33 inscritos que simpatizaram com minha proposta. Tudo caminha bem, com os inevitáveis percalços de um professor calouro.
Outro dia, acompanhei um grupo de maracatu que está sendo formado na cidade. Brinquei um pouco com o agogô, mas depois apenas compus a roda. Colocamos o bloco na rua, nos dirigimos para uma pracinha e um monte de gente começou a chegar, inclusive alunos da universidade. Para minha surpresa, uma dupla de estudantes da psicologia, os únicos de meus alunos que reconheci no batuque, vieram até mim pedir que tirasse uma foto com eles. Havíamos tido apenas uma semana de aula, mas queriam guardar uma foto do professor. “É que nunca tivemos filosofia com um filósofo!”
No mais, o mais. Continuo com a leitura-releitura do Grande Sertão: Veredas, que foi minha preparação para a vinda. Curiosamente, não vi buriti por aqui e, pelo que perguntei, ninguém conhece. Sabem de carnaúba. Mas há uma camelô no centro que vende uma caixinha de doce de buriti vindo do interior do Piauí! O Piauí, para quem não sabe, está bem próximo: Petrolina fica na ponta de Pernambuco – próxima da Serra da Capivara, que quero visitar assim que puder. Lençóis, na Chapada Diamantina, também não está distante...
Forte abraço,
Fl.
terça-feira, 10 de março de 2009
Peteleco em Deus
Um antigo amigo sempre me dizia que dispensava o bom humor e a benevolência de Deus, supondo que, de lá de cima, o que quer que caia chega sempre tão rápido e com tamanho peso que só pode causar estrago. É um raciocínio intuitivo, não se pode negar... O grande estrago, porém, o estrago irreversível, já está feito: a Criação está aí pra quem quiser conferir. Com um sorriso certamente malandro e um meteoro que nos arrancou a lua, a Terra aqui foi posta e sobre ela eis que pisamos. Não se sabe bem por que cargas d’água, certo é que o mundo existe e que nossos olhos, se não se enganam ou são enganados, vêem-no como coisa bem dura e real. Tratemos de não pedir mais nada aos céus, dizia meu velho amigo, além da chuva para o jardim: o que temos, por favor, há de bastar. Pra que correr o risco de ganhar um novo satélite e perder outra parte de nós? Não façamos também nenhuma gracinha e nem arrisquemos uma anedota divina. Como os planetas transladam em eterno ritmo, como com eles giramos nós e rolam outras lágrimas (as nossas), não provoquemos novos estragos, não criemos ensejo para o gracejo: agora, com motivo pra rir, Deus pode gargalhar ainda mais forte e tornar a alma imortal.