terça-feira, 26 de maio de 2009

Soneto do Desencontro

pra Diana,
com o possível cuidado
1º Quarteto
Faltos de arte: desta, a do encontro, e de quantas mais?
2º Quarteto
Faltos da arte? Sim, mas somente em parte.
1º Terceto
A emenda? A sorte. Ou a arte virou sua consorte?
2º Terceto
Verdadeira e falsa verdade – quantas peças nos pregam suas faces?

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Circo Interior: Domador

pro George, mesmo não sendo uma ode
e, de novo, pro Daniel
Todos conhecemos Platão, nem que seja por referência ao amor platônico, que ninguém sabe ao certo o que é. De sua lavra, realmente rica e diversificada, desponta (a partir do séc. XIX) A República, para cujo título, conta-me um amigo helenista, a melhor tradução seria Forma de Governo, do grego politéia, vertido pelos latinos como res publica. À parte a ressalva erudita, convém admitir que A República trata sim das formas de governo, mas também da alma e de muitas outras coisas, como o conhecimento, a educação, a poesia, a música, a imortalidade, as virtudes e que, portanto, talvez não haja título algum que consiga sintetizá-la com perfeição. Seja lá como for, contudo, é correto dizer que ela se baseia numa analogia entre cidade e alma, as quais teriam estruturas homólogas. Tanto uma como outra seriam compostas de três partes: governantes, guardiões e auxiliares; e razão, ira e desejo, seus correspondentes psíquicos.
É claro que uma explicação que faça jus à reflexão platônica e que seja condizente com seus meandros etimológicos deveria entrar em minúcias, mas elas não convêm aqui; elas, ao menos neste instante, não convêm a nós que julgamos o academicismo somente um dos modos do pensar, talvez não o melhor, certamente não o mais criativo. Ressalte-se, pois, apenas uma curta passagem do livro IX na qual Sócrates propõe uma imagem curiosíssima para ilustrar o ponto que Glauco e Adimanto, seus interlocutores em nove dos dez livros da obra, haviam-no incitado a defender: o de que é melhor ser justo do que ser injusto. Imaginemos, diz ele, um ser compósito: monstro policéfalo, leão e homem, sendo humana seu conformação exterior. Todos, vendo-o, logo pensariam tratar-se de um homem comum e não se aperceberiam de que guarda em si um felídeo e um monstrengo insaciável. A imagem presta-se bem a seu intuito: mostrar que o comando cabe ao homem (à racionalidade) e ao leão (ira) o controle do monstro (os desejos) assim como na cidade o governo cabe aos governantes (idealmente filósofos), os quais recebem o apoio dos guardiões no que tange à aplicação das leis. Não devemos nos apressar e concluir daí que Platão propunha a extinção dos desejos, como se fossem todos bestiais. Muito pelo contrário. “Platão não é cristão”, provocaria meu amigo. Tais como os auxiliares na cidade, quer artesãos, quer agricultores, os desejos são fundamentais na alma, necessários mesmo, apenas não devem exceder a dimensão lhes cabe.
Com essa imagem, Sócrates almejava explicitar o maior valor da justiça frente à injustiça. O motivo é o seguinte: no injusto, a razão seria cativa ou dos desejos ou da ira, desarmonia que só poderia levar à infelicidade. Será que alguém imagina poder ser feliz se uma fera ou um monstro guiar-lhe os passos? Vale destacar que aí se encontra materializada a noção de auto-domínio, tão cara aos gregos e em particular a Sócrates. E o auto-domínio tem como essência o auto-conhecimento e o senhorio das paixões.
E é justamente aí que me pergunto, será que realmente convém dominar as paixões? Melhor dizendo: será que quadra manter sempre e inquestionavelmente a razão no comando? Será, interrogo-me, que, ao menos por vezes, deixar os desejos emergir com contundência não poderia revelar-nos novas facetas de nós mesmos? Será que o rigor no auto-domínio não poderia atravancar o auto-conhecimento? Não nos enxergamos mais nitidamente depois de desafiar nossos limites? A libido e outros apetites sedentos nunca teriam nada a nos ensinar, nem sob a forma de uma lição? Será possível conhecermo-nos a ponto de delimitar com exatidão os desejos que nos calham e até onde calham? Será que não nos apequenamos ao submetermo-nos à completa previsibilidade da razão? Será que realmente não cabe à desrazão ou à loucura algum papel relevante na descoberta de nós mesmos?
Gosto de pensar Sócrates como um artista circense, em especial como um domador de feras, sempre tentando imprimir ordem àquilo que, ao menos em aparência, foge à racionalidade. Sei que suas metáforas apelam preferencialmente para a escultura e a medicina, jamais ao circo; mas suponho que a arte circense tenha sido inventada num período posterior ao clássico. Azar dele, que perdeu uma ótima metáfora. Pensemos bem: não é ele como um domador de leões, tigres e outras panteras? Que sabe alimentar a fera até o ponto adequado, que se arvora a controlá-la com maestria? Refletindo nesses termos, fica claro o porquê de ele se recusar a conceder aos desejos qualquer prerrogativa política ou anímica que não fosse a manutenção da subsistência. O leão e as feras do circo equivalem ao monstro policéfalo d’A República e todos, venhamos e convenhamos, asseveraria Platão, precisam ser contidos para não colocarem em risco seja a cidade, seja a alma, seja o respeitável público.
Todavia, conservo a desconfiança: fustigando de tal modo o leão, não nos arriscamos a domesticá-lo, deformando-lhe a natureza? Não fazemos da fera um mero gato? Sob o manto de um artista da alma, não nos travestimos em domador prepotente e subjugamos o risco e o imprevisto, o tempero do espetáculo? Ao eximir o perigo, não há algo que perdemos, que amesquinhamos? Será que não nos petrificamos naquilo que outrora planejamos ou pensamos ser e esmagamos o que por ventura há em nós de impensável e impensado? Não aniquilaríamos a origem de qualquer revolução possível, de toda mudança profunda e não-calculada? De onde mais poderia emergir o ímpeto para nos demover de nossas estruturas consolidadas? Onde mais encontraríamos um meio de não sermos apenas um felino adestrado e arcaico, se aplacarmos essa força, essa fonte, essa fúria?
“Sem a loucura que é o homem / mais que a besta sadia / cadáver adiado que procria?” Meu velho amigo, nunca o vi recitar Pessoa, embora bem possa imaginá-lo desfrutando desses versos do Mensagem. Entretanto, em que pese a galhofa, julgo compreender as razões de Sócrates, cujo fim último era propor uma nova conformação social, uma inédita e justa organização política que não podia tolerar os desvarios da vontade, sempre propensas ao descomedimento, à tirania. Porém, mesmo assim, mantenho o questionamento, reitero a interrogação: será que a extravagância, será que o desatino nos podem ser profícuos? Abstraindo-se a harmonia citadina, podemos haurir algum proveito da volúpia ou agressividade? Até quando manter os impulsos submetidos ao chicote implica suprimir uma parte de nós que pode nos alçar a inexploradas regiões psíquicas? As unhas, nossas garras, vamos deixá-las crescer?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Decantar, eu decanto

pra Rafita e pro Diogo, únicos
também pra Nana, linda
et pour Marie, rêve irréalisable

À medida que envelheço, julgo que sou posto frente a novos sentimentos, virtudes e vícios. Lembro-me, por exemplo, de quando conheci a coragem. Ainda era jovem, embora não faça assim tanto tempo, e vi-me frente a um dilema que me obrigou a fazer uma difícil escolha. Tratava-se de opção profissional, que naquele momento assumia a forma de uma alternativa entre duas graduações. Como uma ironia da vida, a perda de um amigo muito próximo, motociclista morto com uma linha de cerol que quase o decapitou, ajudou-me a decidir. Pensei que, também de modo repentino, meus dias poderiam chegar ao fim e calou fundo a dor de construir uma vida pouco genuína, mesmo que dita segura. Imaginava-me moribundo a lamentar tudo que gostaria de ter feito e, por medo, deixara de lado. Tive a clara convicção: a despeito de todos os riscos, era preciso tomar o caminho mais difícil, o caminho que se apresentava como sendo o meu, e para tanto havia que ter coragem.

Mais tarde, tive de ater-me com outros sentimentos, como ódio, inveja e agradecimento, que brotaram em mim como fruto de novas experiências e reflexões. Acontece que com o passar dos anos não apenas clarificam-se os estados de nosso ânimo, a força ou fraqueza de nosso espírito, mas cristalizam-se as vivências mais marcantes, aquelas que fulguram na memória e insistem em ressoar no peito. Com freqüência têm caráter extremo: morte, amor, separação. Entretanto, podem ser marcantes simplesmente pela beleza e gratuidade, em nada menos radicais que o luto, a entrega ou a ruptura. É o caso de pequenos atos, como uma mão estendida, um convite inesperado, um olhar silencioso. Contudo, também é o caso dos encontros fortuitos que se consolidam em amizades e perpetuam-se no tempo, sobrevivendo à distância e sobrepujando ausências. Simultaneamente leves e consistentes, trazem em si o selo do sublime.

Ressalto a beleza desses encontros, fugazes e memoráveis, inexplicáveis como o acaso, cuja espontaneidade é desconcertante. Graças a qual encantamento entrelaçam-se pessoas desconhecidas em laços fraternais? Por quais secretos motivos a afeição que de tais laços emerge consegue atravessar longas latências mantendo vivo o desejo do reencontro, inevitavelmente efêmero e talvez impossível? Onde está a raiz dessa ligação, do vínculo imune ao oblívio? Por que será que não fenece? Que singular ferida é essa, que, sem deixar cicatriz, mantém-se à flor da pele? Há nome para amizade dessa estirpe?

Tais encontros nascem como que do nada e, quando nos damos conta, já são adamantinos. Duram um átimo, voláteis que são, mas impõem-se como um monumento. Podem surgir num veraneio, numa visitação a museu ou biblioteca, sabe-se lá onde mais. Certo é terem um calor intrínseco que impede de extinguir-se a flama do afeto. É algo impremeditado, inverossímil e, no entanto, real. O anseio é de que se repitam, mas inexiste exatidão quanto ao momento em que isso acontecerá, se é que acontecerá. É incalculável o dia em que as rotas se cruzarão novamente.

Passados meses de absoluto afastamento e silêncio, às vezes mais de ano, o reencontro, quando se dá, reluz – extáticos, olhamo-nos nos olhos, medram as lembranças e o desejo de novas vivências; imersos em renitente saudade, ainda somos íntimos e estamos à vontade como se na véspera estivéssemos juntos. Magicamente, revoga-se a intermitência, unem-se passado e presente e instaura-se um tempo de exceção, que em breve será rompido por nova despedida e permanecerá tão almejado quanto nunca.

Dentre os sentimentos que os anos me proporcionaram, eis um para o qual ainda não encontrei expressão propícia, a não ser admitir que, quando a morte bater à minha porta, talvez repentinamente, não terei o direito de maldizer a vida, sabedor que sou de que esses raros encontros, insignes como são, justificam uma existência; quando se cumprir minha hora, aceitarei de bom grado e sem aventar relutância, como quem consente em descer a montanha após ter logrado alcançar o cume.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Circo Interior: Malabaris

Todos os dias, quando é chegada a noite, sento-me à mesa e ponho-me a escrever. É um hábito de anos, que remonta ao tempo de minha adolescência. Por ausência de melhor termo, chamo meu caderno de diário e, no momento em que meu desejo o solicita, falo com meus botões: “acho que vou ao papel” ou “é hora da palavra”. Daí é pegar o espiral, tomar a caneta à mão e pôr o mundo entre parênteses. Como muitos antes de mim, transformei esse costume em parte do meu próprio ser e acredito que, sem o recurso à escrita, seria incapaz de impedir que o cotidiano me atropelasse. No mundo em que vivemos, creio que o excesso de estímulos quase sempre nos faz confundir as bolas, vejo que se lançam sobre nós muito mais peloticas do que podemos manejar com nossa pequena habilidade malabarista. Ou será que é apenas ao meu redor que se avoluma a confusão das esferas?
Eis o sentido dos cadernos dispostos no alto do armário. Cheios de páginas e páginas manuscritas, alguns desenhos, papéis colados, notas, cartas, bilhetes, fragmentos de calendários e agendas, eles nada mais são que ruminações em torno do eu. Lento como sou, preciso de uma segunda digestão para eliminar falsos alimentos e assimilar os nutrientes de que sou composto. Assim, o recolhimento acabou se tornando uma espécie de casco dentro do qual me protejo e reúno condições para reganhar o exterior. Com a meditação e a palavra escrita, desbasto-me dos sobejos e acredito aproximar-me de mim: recolho os globos que não me pertencem, jogo-os fora ou destino-os a quem lhes cabe o direito, e fico com os meus, aqueles que realmente me dizem respeito e que posso suster com relativo domínio.
O papel é minha coxia e só ali, de frente ao espelho branco, posso tentar dimensionar minha forma, ora convexa, ora côncava. Tudo é labor e esmero no treino das mãos e no cuidado de si. Não há mágica nesse processo: disciplina e auto-escrutínio sem recurso a truques. Ao escrever, não maquino espetáculos. Ao contrário, é a hora em que abandono o picadeiro e recolho-me para repensar e polir movimentos, tendo de curvar-me quantas vezes for necessário. Acho que a construção de nosso próprio número, que é a constituição de nós mesmos, convém ser limpa e precisa, se não queremos ser caricatos, inautênticos como bufões. Que sejam três, que sejam quatro, que sejam cinco ou que seja apenas uma. Não importa. Interessa sempre lançar ao ar apenas as pelotas que podemos equilibrar.

sábado, 2 de maio de 2009

Paz Armada

É noite de sexta e neste instante sem mãe, já noite avançada, não encontro motivo algum para escrever. Sinto-me feliz sem qualquer razão. Acordei assim, como também ontem e antes de ontem. Já dancei sozinho na sala, fiz meus exercícios circenses e ri de mim mesmo cantando no escuro. Imagino que, fosse eu uma pena, não estaria tão leve.
Na medida do possível, tudo está bem no trabalho, que, nesta semana, não me trouxe novas (grandes) torturas. Na república, continuamos sem qualquer rusga, embora ainda aprendendo a arranjar os espaços. Todos os problemas estão em seus lugares (indevidos, como o de todos os problemas), mas seus olhos de gato não me interrogam. Aceito o que têm de irresolução e me sinto em paz.
É impossível medir quanto tempo esse enlevo vai durar. Entendo que a angústia é uma esfinge de mil faces, cujo silêncio é um enigma aterrador, mas não sou eu quem vai romper o armistício.