quarta-feira, 29 de junho de 2011

Citação VII: Luís da Câmara Cascudo

O Sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levam facilmente as charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxes de Donalson e de Youmans. As meninas, que conheci espiando os “home” por detrás das frixas das portas, reclusas nas camarinhas, dançando a meia légua de distância do par, hoje usam o cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado tango-girls do Aero Blub e Natal Club. Numa viagem, em janeiro de 1928, eu mostrava a Mário de Andrade, nos arroados do Baixo-Açu, crianças com a bochechinha pintada de papel encarnado, fingindo rouge. Encontrei jornais do Rio e São Paulo em toda parte. O Sertão descaracteriza-se. É natural que o cantador vá morrendo também.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Atentada Tradução X: Cioran

Précis de la Décomposition
Annulation par la Délivrance
Une doctrine du salut n’a de sens que si nous partons de l’équation existence-souffrance. Ce n’est ni une constatation subite, ni une série de raisonnements qui nous conduisent à cette équation, mais l’élaboration inconsciente de tous nos instants, la contribution de toutes nos expériences, infimes ou capitales. Quand nous portons des germes de déceptions et comme une soif de les voir éclore, le désir que le monde infirme à chaque pas nos espoirs multiplie les vérifications voluptueuses du mal. Les arguments viennent ensuite ; la doctrine se construit : il ne reste encore que le danger de la « sagesse ». Mais, si l’on ne veut pas s’affranchir de la souffrance ni vaincre les contradictions et les conflits, si on préfère les nuances de l’inachevé et les dialectiques affectives à l’uni d’une impasse sublime ? Le salut finit tout ; et il nous finit. Qui, une fois sauvé, ose se dire encore vivant ? On ne vit réellement que par le refus de se délivrer de la souffrance et comme par une tentation religieuse de l’irréligiosité. Le salut ne hante que les assassins et les saints, ceux qui ont tué ou dépassé la créature ; les autres se vautrent – ivres morts – dans l’imperfection…
Le tort de toute doctrine de la délivrance est de supprimer la poésie, climat de l’inachevé. Le poète se trahirait s’il aspirait à se sauver : le salut est la mort du chant, la négation de l’art et de l’esprit. Comment se sentir solidaire d’un aboutissement ? Nous pouvons raffiner, jardiner nos douleurs, mais par quel moyen nous en émanciper sans nous suspendre ? Dociles à la malédiction, nous n’existons qu’en tant que nous souffrons. – Une âme ne s’agrandit et ne périt que par la quantité d’insupportable qu’elle assume.
Breviário da Decomposição
Anulação pela Libertação
Uma doutrina da salvação só tem sentido se partimos da equação existência-sofrimento. Não é nem uma constatação súbita, nem uma série de raciocínios que nos conduzem a essa equação, mas a elaboração inconsciente de todos os nossos instantes, a contribuição de todas as nossas experiências, ínfimas ou capitais. Quando possuímos os germens de decepções e como uma sede de vê-los eclodir, o desejo de que o mundo diminua a cada passo nossas esperanças multiplica as verificações voluptuosas do mal. Os argumentos vêm em seguida; a doutrina se constrói: resta ainda apenas o perigo da “sabedoria”. Mas e se não queremos libertar-nos do sofrimento nem vencer as contradições e os conflitos, se preferimos as nuances do inacabado e as dialéticas afetivas à união de um impasse sublime? A salvação acaba com tudo; ela acaba conosco. Quem, uma vez salvo, ousa ainda se dizer vivo? Só se vive realmente pela recusa de se libertar do sofrimento e como que por uma tentação religiosa da irreligiosidade. A salvação não persegue senão os assassinos e os santos, aqueles que mataram ou ultrapassaram a criatura; os outros tombam – mortos ébrios – na imperfeição...
O erro de toda a doutrina da libertação é suprimir a poesia, morada do inacabado. O poeta se trairia se aspirasse a se salvar: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito. Como se sentir solidário de um término? Nós podemos refinar, cultivar nossas dores, mas por que meio delas nos emancipar sem nos suprimir? Inclinados à maledicência, existimos somente enquanto sofremos. – Uma alma não se engrandece e não perece senão pela quantidade de insuportável que ela assume.

sábado, 11 de junho de 2011

A velha bate à porta

A velha bate à porta
para abrir-nos a via estreita,
escorreita ela se desforra
do riso, do beijo, da não-maleita.
Sua força, ás franzino,
vem do toque eterno da morte,
dela mesma, anciã menina,
velha-jovem que se renova
na súbita e esperada batida
não do peito, mas à porta
que a alguns alucina
e muito não demora.

A porta em que ela bate
sempre esteve no trinco.
Trancá-la à chave só cabe
à sede seca – chumbinho.
Mas isso nada não é
senão abri-la sozinho,
abri-la por dentro e de chofre
no desespero menino
que não joga o jogo da sorte
que cospe o sublime acepipe:
a vida, os inúteis caminhos.

(Maior iguaria não há,
nem menor não existe,
mas desfrutá-la só faz
quem ao tempo resiste
andando por vias errantes
antes da sabida visita.)

E não há vingança envolvida
em todo o macabro processo.
E nem há processo macabro
na mão a bater à porta
na vida a que se dá cabo.
Quando a velha vai à forra,
não se vinga, se completa
o tempo que já não sobra,
ninguém mais anda, nem erra:
é o segundo em que se acorda
ou o que em paz se dorme,
é o tempo sem vagueza
que não brinca, não faz hora
marca o passo, acaba o ciclo,
acerta a hora das horas.