terça-feira, 29 de setembro de 2009

Memento Mori

Já não lembro mais quando aconteceu a festa de aniversário: gente empolgada e bêbeda, salgadinhos sem novidade, músicas da moda – uma comemoração como tantas outras, não fosse por ter transformado num questionamento existencial uma dúvida comum: devo ou não devo comer do bolo?
É curioso como nosso pensamento vagueia. Às vezes, a partir de uma questão banal, somos transportados para terras longínquas. Pensando sobre o bolo e todo aquele açúcar, ocorreu-me o que um tio sarcástico dissera-me há anos a propósito de minha recusa em comer bobagens: “Você vai morrer com saúde!” ou, o que dá na mesma, “Você será o defunto mais saudável do cemitério, parabéns!” É um comentário espirituoso, reconheço, mas menos pela crítica à dieta (na verdade, nada além da exclusão de excessos) do que pelo apelo à morte. Sabemos que todos morreremos, mas será que, tendo a morte como perspectiva, estamos autorizados a fazer qualquer coisa?
São Paulo ou simplesmente Paulo, a depender da fé, possui uma frase extraordinária: “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.” (1 Cor 15:32) Destaca-se aí o pressuposto de que, se a vida não possui um sentido maior, dado neste caso pela crença religiosa, resta-nos aproveitar ao máximo os dias que temos sobre a Terra realizando todo e qualquer desejo. Carpe diem! Séculos depois, a partir da leitura de Dostoievski, Sartre haveria de formular uma interrogação que toca no mesmo problema: “Se Deus não existe, tudo é permitido?”
É impressionante como a morte regula nossas ações, quer pelo medo do que virá depois, quer pelo fato de representar o fim absoluto, móbil esse muito mais persuasivo, já que ninguém sabe se de fato existe o post mortem. Mas é impressionante também como normalmente evitamos pensar na morte, valendo-nos dela apenas em momentos oportunos, em especial quando nos falta coragem para tomar uma decisão. Ponderamos: “A vida é curta e está sempre por um triz. E se eu morrer amanhã?” Assim angariamos forças para mudar de emprego, pedir perdão ou dizer ‘te amo’. Quem sabe ainda para cometer loucuras ou pequenos pecados. É inegável: a morte nos incita ao ato. Será, porém, que justifica tudo? Até comer uma fatia de bolo?

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Citação I: Orides Fontela

MEIO-DIA

Ao meio-dia a vida
é impossível.

A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.

A luz é demais para os homens.
(Porém como o saberias
quando vieste à luz
de ti mesmo?)

Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.

sábado, 12 de setembro de 2009

Quase diário

Sabe, amigo, hoje escrevo para me desculpar. É que ando muito partido, sentindo-me disperso na vida. Para que? Por que? Onde? Estou amuado, como quem perdeu a graça, ficou sem assunto, meteu-se num beco sem se dar conta.

Sabe, amigo, um repente e tudo esfacela-se? A saudade retumbante no peito, a alma sem ânimo, o enfado infinito? E uma angústia sem estridência? Só a ânsia pelo retorno – ao nada? a Minas? ao mito?

Sabe, amigo, o desejo de olhar para trás e virar estátua de sal? O colo que não existe? Acontece, não é verdade? A vontade de matar o vizinho, o ruído que não cessa? O inimigo dentro de nós?

Sabe, amigo, digo a mim mesmo que preciso ter paciência, que vai passar. Digo como dizia à minha avó, sete anos de luta contra o câncer.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Maturidade

Ao despertar, vejo o sol despontar
para mais um dia de terrível calor.
É verão e a praia está distante,
embora não tanto quanto a juventude.
– Tornei-me homem!
Os amores de mar passaram,
passaram os veraneios e as horas vãs,
passaram os anos de aventura e risos.
– Ao menos trabalho sem grandes pesares.

Levanto-me para restaurar o presente.
A mesa está posta como sempre esteve.
O pão, o café que mal tomo,
a bolacha doce de chocolate ruim.
Em poucos instantes, terei de sair
e fingirei que tudo está bem,
adulto maduro que sou.

Mais tarde, quando ao meio dia o sol estiver a pino,
farei meu almoço de arroz com feijão
e ovos estalados à moda escrava.
Sentarei à mesa, porei farinha no meu prato,
e mastigarei um pouco do passado,
degustando o amargo desta prisão,
nostalgia.

De noite, chegado em casa para o sono,
acabarei enfim por me despir
antes de deitar-me em silêncio na cama de velhos sonhos.
É preciso dormir.
Estou nu frente à memória
e não posso amá-la.