O Sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levam facilmente as charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxes de Donalson e de Youmans. As meninas, que conheci espiando os “home” por detrás das frixas das portas, reclusas nas camarinhas, dançando a meia légua de distância do par, hoje usam o cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado tango-girls do Aero Blub e Natal Club. Numa viagem, em janeiro de 1928, eu mostrava a Mário de Andrade, nos arroados do Baixo-Açu, crianças com a bochechinha pintada de papel encarnado, fingindo rouge. Encontrei jornais do Rio e São Paulo em toda parte. O Sertão descaracteriza-se. É natural que o cantador vá morrendo também.
quarta-feira, 29 de junho de 2011
quinta-feira, 23 de junho de 2011
Atentada Tradução X: Cioran
Précis de la Décomposition
Annulation par la Délivrance
Une doctrine du salut n’a de sens que si nous partons de l’équation existence-souffrance. Ce n’est ni une constatation subite, ni une série de raisonnements qui nous conduisent à cette équation, mais l’élaboration inconsciente de tous nos instants, la contribution de toutes nos expériences, infimes ou capitales. Quand nous portons des germes de déceptions et comme une soif de les voir éclore, le désir que le monde infirme à chaque pas nos espoirs multiplie les vérifications voluptueuses du mal. Les arguments viennent ensuite ; la doctrine se construit : il ne reste encore que le danger de la « sagesse ». Mais, si l’on ne veut pas s’affranchir de la souffrance ni vaincre les contradictions et les conflits, si on préfère les nuances de l’inachevé et les dialectiques affectives à l’uni d’une impasse sublime ? Le salut finit tout ; et il nous finit. Qui, une fois sauvé, ose se dire encore vivant ? On ne vit réellement que par le refus de se délivrer de la souffrance et comme par une tentation religieuse de l’irréligiosité. Le salut ne hante que les assassins et les saints, ceux qui ont tué ou dépassé la créature ; les autres se vautrent – ivres morts – dans l’imperfection…Annulation par la Délivrance
Breviário da Decomposição
Anulação pela Libertação
Uma doutrina da salvação só tem sentido se partimos da equação existência-sofrimento. Não é nem uma constatação súbita, nem uma série de raciocínios que nos conduzem a essa equação, mas a elaboração inconsciente de todos os nossos instantes, a contribuição de todas as nossas experiências, ínfimas ou capitais. Quando possuímos os germens de decepções e como uma sede de vê-los eclodir, o desejo de que o mundo diminua a cada passo nossas esperanças multiplica as verificações voluptuosas do mal. Os argumentos vêm em seguida; a doutrina se constrói: resta ainda apenas o perigo da “sabedoria”. Mas e se não queremos libertar-nos do sofrimento nem vencer as contradições e os conflitos, se preferimos as nuances do inacabado e as dialéticas afetivas à união de um impasse sublime? A salvação acaba com tudo; ela acaba conosco. Quem, uma vez salvo, ousa ainda se dizer vivo? Só se vive realmente pela recusa de se libertar do sofrimento e como que por uma tentação religiosa da irreligiosidade. A salvação não persegue senão os assassinos e os santos, aqueles que mataram ou ultrapassaram a criatura; os outros tombam – mortos ébrios – na imperfeição...Anulação pela Libertação
sábado, 11 de junho de 2011
A velha bate à porta
A velha bate à porta
para abrir-nos a via estreita,
escorreita ela se desforra
do riso, do beijo, da não-maleita.
Sua força, ás franzino,
vem do toque eterno da morte,
dela mesma, anciã menina,
velha-jovem que se renova
na súbita e esperada batida
não do peito, mas à porta
que a alguns alucina
e muito não demora.
A porta em que ela bate
sempre esteve no trinco.
Trancá-la à chave só cabe
à sede seca – chumbinho.
Mas isso nada não é
senão abri-la sozinho,
abri-la por dentro e de chofre
no desespero menino
que não joga o jogo da sorte
que cospe o sublime acepipe:
a vida, os inúteis caminhos.
(Maior iguaria não há,
nem menor não existe,
mas desfrutá-la só faz
quem ao tempo resiste
andando por vias errantes
antes da sabida visita.)
E não há vingança envolvida
em todo o macabro processo.
E nem há processo macabro
na mão a bater à porta
na vida a que se dá cabo.
Quando a velha vai à forra,
não se vinga, se completa
o tempo que já não sobra,
ninguém mais anda, nem erra:
é o segundo em que se acorda
ou o que em paz se dorme,
é o tempo sem vagueza
que não brinca, não faz hora
marca o passo, acaba o ciclo,
acerta a hora das horas.
para abrir-nos a via estreita,
escorreita ela se desforra
do riso, do beijo, da não-maleita.
Sua força, ás franzino,
vem do toque eterno da morte,
dela mesma, anciã menina,
velha-jovem que se renova
na súbita e esperada batida
não do peito, mas à porta
que a alguns alucina
e muito não demora.
A porta em que ela bate
sempre esteve no trinco.
Trancá-la à chave só cabe
à sede seca – chumbinho.
Mas isso nada não é
senão abri-la sozinho,
abri-la por dentro e de chofre
no desespero menino
que não joga o jogo da sorte
que cospe o sublime acepipe:
a vida, os inúteis caminhos.
(Maior iguaria não há,
nem menor não existe,
mas desfrutá-la só faz
quem ao tempo resiste
andando por vias errantes
antes da sabida visita.)
E não há vingança envolvida
em todo o macabro processo.
E nem há processo macabro
na mão a bater à porta
na vida a que se dá cabo.
Quando a velha vai à forra,
não se vinga, se completa
o tempo que já não sobra,
ninguém mais anda, nem erra:
é o segundo em que se acorda
ou o que em paz se dorme,
é o tempo sem vagueza
que não brinca, não faz hora
marca o passo, acaba o ciclo,
acerta a hora das horas.
segunda-feira, 30 de maio de 2011
Contra a revolução
Para o Carlão,
na medida do possível
na medida do possível
Talvez não haja algo mais démodé do que a idéia de revolução. Imaginar que ocorra alguma, como a Russa ou a Cubana, é atualmente algo muito difícil, embora continuemos a viver num mundo injusto. A razão parece-me bem simples: a maior parte de nós está interessada apenas em garantir “o seu” e, no máximo, “o nosso”, quando este nos reserva um bom quinhão.
Confesso, contudo, que a inviabilidade de uma revolução, capitaneada por um líder ou pequeno grupo, sequer me comove. Não acredito nela e, na verdade, mesmo que ocorra, penso que está fadada ao insucesso. Temos de mudar a nós mesmos antes de mudarmos as estruturas, porque, se for para permanecermos como somos, com os mesmos insaciáveis desejos, os mesmos impulsos tolos, as opiniões de sempre, de que adianta estabelecer o novo se continuaremos velhos? Aliás, a sociabilidade com que sonhamos não poderá jamais se manter a menos que nós – e não um poder, um estado, um governo – sejamos seu esteio. Enquanto acalentarmos os valores e práticas que conformam o modus vivendi atual, nenhuma esperança é possível.
Por causa disso, e me perdoem os utópicos de 1917 e 1959, creio que devemos dar cabo das abstrações e lançarmos nossos olhos para o concreto. Que tal, em lugar de falarmos em “pobres”, falarmos nos mendigos que saltamos nas ruas de nossas cidades, nos famintos que batem à nossa porta? Que tal, ao invés de acusarmos a “elite”, acusarmos a nós mesmos, que faríamos o mesmo se invertêssemos as posições? Que tal, pois, sermos como as mulheres, que não parem a “humanidade”, mas dão luz a “marias e josés”?
A revolução é, antes de tudo, uma auto-transformação e o melhor modo de iniciá-la é começar a sermos o que ainda não somos. Muito, muito antes da guerra ou da manifestação, do slogan ou do grito, penso que é o caso de nos voltarmos para o cotidiano e suas miudezas, materializando silenciosamente os ideais que nunca pisaram o chão e de que nunca, a rigor, fomos dignos. Só há uma política de fato revolucionária: a política dos pequenos gestos.
Confesso, contudo, que a inviabilidade de uma revolução, capitaneada por um líder ou pequeno grupo, sequer me comove. Não acredito nela e, na verdade, mesmo que ocorra, penso que está fadada ao insucesso. Temos de mudar a nós mesmos antes de mudarmos as estruturas, porque, se for para permanecermos como somos, com os mesmos insaciáveis desejos, os mesmos impulsos tolos, as opiniões de sempre, de que adianta estabelecer o novo se continuaremos velhos? Aliás, a sociabilidade com que sonhamos não poderá jamais se manter a menos que nós – e não um poder, um estado, um governo – sejamos seu esteio. Enquanto acalentarmos os valores e práticas que conformam o modus vivendi atual, nenhuma esperança é possível.
Por causa disso, e me perdoem os utópicos de 1917 e 1959, creio que devemos dar cabo das abstrações e lançarmos nossos olhos para o concreto. Que tal, em lugar de falarmos em “pobres”, falarmos nos mendigos que saltamos nas ruas de nossas cidades, nos famintos que batem à nossa porta? Que tal, ao invés de acusarmos a “elite”, acusarmos a nós mesmos, que faríamos o mesmo se invertêssemos as posições? Que tal, pois, sermos como as mulheres, que não parem a “humanidade”, mas dão luz a “marias e josés”?
A revolução é, antes de tudo, uma auto-transformação e o melhor modo de iniciá-la é começar a sermos o que ainda não somos. Muito, muito antes da guerra ou da manifestação, do slogan ou do grito, penso que é o caso de nos voltarmos para o cotidiano e suas miudezas, materializando silenciosamente os ideais que nunca pisaram o chão e de que nunca, a rigor, fomos dignos. Só há uma política de fato revolucionária: a política dos pequenos gestos.
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Do doce vinagre
A recente beatificação do Papa João Paulo II fez com que eu me atentasse para algo que nunca havia notado. Não, não me refiro à incompreensível distinção entre santo e beato, mas a algo mais prosaico: às sessões de milagres de algumas igrejas evangélicas (milagre com dia e hora marcados?) e a profusão de milagres nessas mesmas sessões (milagres contados às dezenas?). ‘Milagre’ se tornou um termo corriqueiro, repetido à exaustão. De tão falado, aliás, parece até natural, fenômeno cotidiano. Será que não é o caso de reabilitarmos o advogado do diabo?
Seja como for, acredito que, para além do campo religioso, estamos eivados de algo que poderíamos chamar de “lógica do milagre” e que somos muito simpáticos a ela. É que, várias vezes, aspiramos a soluções fáceis e súbitas de nossos problemas, como se fosse possível nos livrarmos das pedras de nossos sapatos por um passe de mágica. Acho que essa é uma boa perspectiva para pensar a loteria, as cirurgias plásticas e muitas outras coisas: de repente, como que por um milagre profano, mudamos de vida, de corpo... E sem nenhum esforço, sem ter de trabalhar, sem ter de fazer dieta, sem ter de comer o pão que o diabo amassou!
O lamentável dessa lógica é que nos colocamos numa posição completamente passiva. Resignados ou desesperados, ficamos postados à espera de um redentor (um mestre, um deus, um curandeiro, a sorte) e sonhamos com a resolução repentina de nossos males, antevendo o gosto do vinho sem notar que a água avinagre-se.
Seja como for, acredito que, para além do campo religioso, estamos eivados de algo que poderíamos chamar de “lógica do milagre” e que somos muito simpáticos a ela. É que, várias vezes, aspiramos a soluções fáceis e súbitas de nossos problemas, como se fosse possível nos livrarmos das pedras de nossos sapatos por um passe de mágica. Acho que essa é uma boa perspectiva para pensar a loteria, as cirurgias plásticas e muitas outras coisas: de repente, como que por um milagre profano, mudamos de vida, de corpo... E sem nenhum esforço, sem ter de trabalhar, sem ter de fazer dieta, sem ter de comer o pão que o diabo amassou!
O lamentável dessa lógica é que nos colocamos numa posição completamente passiva. Resignados ou desesperados, ficamos postados à espera de um redentor (um mestre, um deus, um curandeiro, a sorte) e sonhamos com a resolução repentina de nossos males, antevendo o gosto do vinho sem notar que a água avinagre-se.
domingo, 8 de maio de 2011
Última Liberdade
É difícil defender, / só com palavras, a vida
ainda mais quando ela é / esta que vê, severina.
JCMN – Morte e Vida Severina
ainda mais quando ela é / esta que vê, severina.
JCMN – Morte e Vida Severina
Seria falso dizer que não imaginava que pudesse acontecer. No entanto, isso não significa que não tenha ficado surpreso com a notícia do suicídio de uma colega com quem convivi alguns anos durante minha graduação. Fomos bolsistas de um mesmo programa de pesquisa e, sabendo agora que ela se enforcou, constato que aquilo que sempre se lhe apresentara como uma alternativa acabou tornando-se objeto de escolha.
Confesso que fiquei abalado a tal ponto que optei por não ir ao velório e enterro. Mais do que nunca, talvez por ter acometido uma pessoa relativamente próxima, talvez por ter sido realizado de modo brutal e premeditado, o suicídio calou fundo em mim. Sabemos agora que um enorme sofrimento a remoía interiormente, sofrimento que encontrou expressão na morte voluntária. Agora, porém, é tarde demais.
Não há como explicar o pensamento suicida quando ele se constrói no mais absoluto silêncio e em contraste com condições objetivas que parecem alicerçar uma vida em tranqüilo progresso: formatura, emprego, casa própria, carro novo, casamento. No entanto, pergunto-me se há meios de evitar o suicídio, se há algum argumento capaz de demover quem se encontra na fronteira final.
Avento, inicialmente, o sofrimento que se causará a outros, mas isso me parece insuficiente: o cálculo é óbvio quando a dor que carregamos no peito se torna insuportável. Cogito, em segundo lugar, o argumento do futuro: se sofremos no presente, se temos sofrido há muito, nada impede que nossa vida se torne melhor e que, a partir de um futuro mais ou menos breve, tenhamos dias agradáveis e felizes. Contudo, quando a dor é lancinante, é possível nos apoiarmos num olhar prospectivo? Por fim, interrogo-me sobre o desejo de perfeição tão caro a muitos de nós: frustração, fracasso, impotência, limitação, perda – até que ponto a dor, em suas mais variadas formas, não é potencializada por uma expectativa irreal acerca de nós e do mundo?
É certamente uma grande ironia o fato de que o ato de radical afirmação da liberdade corresponda à máxima negação de si mesmo, mas, frente a uma paixão incandescente, a razão tem pouco a fazer. Se um comentário me é permitido, acho que, se não atuamos dia a dia sobre nossas mazelas e domamos os monstros que nos assombram; se não aprendemos a rir das imperfeições e desfrutar de nossas migalhas; se, em suma, não cuidamos cotidianamente da tênue chama que alumia nossas vidas, corremos o risco de que ela se apague e que nada mais nos reste senão o mergulho na noite eterna.
Confesso que fiquei abalado a tal ponto que optei por não ir ao velório e enterro. Mais do que nunca, talvez por ter acometido uma pessoa relativamente próxima, talvez por ter sido realizado de modo brutal e premeditado, o suicídio calou fundo em mim. Sabemos agora que um enorme sofrimento a remoía interiormente, sofrimento que encontrou expressão na morte voluntária. Agora, porém, é tarde demais.
Não há como explicar o pensamento suicida quando ele se constrói no mais absoluto silêncio e em contraste com condições objetivas que parecem alicerçar uma vida em tranqüilo progresso: formatura, emprego, casa própria, carro novo, casamento. No entanto, pergunto-me se há meios de evitar o suicídio, se há algum argumento capaz de demover quem se encontra na fronteira final.
Avento, inicialmente, o sofrimento que se causará a outros, mas isso me parece insuficiente: o cálculo é óbvio quando a dor que carregamos no peito se torna insuportável. Cogito, em segundo lugar, o argumento do futuro: se sofremos no presente, se temos sofrido há muito, nada impede que nossa vida se torne melhor e que, a partir de um futuro mais ou menos breve, tenhamos dias agradáveis e felizes. Contudo, quando a dor é lancinante, é possível nos apoiarmos num olhar prospectivo? Por fim, interrogo-me sobre o desejo de perfeição tão caro a muitos de nós: frustração, fracasso, impotência, limitação, perda – até que ponto a dor, em suas mais variadas formas, não é potencializada por uma expectativa irreal acerca de nós e do mundo?
É certamente uma grande ironia o fato de que o ato de radical afirmação da liberdade corresponda à máxima negação de si mesmo, mas, frente a uma paixão incandescente, a razão tem pouco a fazer. Se um comentário me é permitido, acho que, se não atuamos dia a dia sobre nossas mazelas e domamos os monstros que nos assombram; se não aprendemos a rir das imperfeições e desfrutar de nossas migalhas; se, em suma, não cuidamos cotidianamente da tênue chama que alumia nossas vidas, corremos o risco de que ela se apague e que nada mais nos reste senão o mergulho na noite eterna.
sábado, 30 de abril de 2011
Ainda o vinho
[Do Lutgarda n.2, de meados de 2000]
Era uma vez um homem que amou desmedidamente uma mulher.Era a mesma vez uma mulher que amou desmedidamente um homem.
Outra era a vez em que conheceram o tempo.
Outra era a mesma vez em que conheceram o medo do tempo.
Outra era ainda a mesma vez em que mediram o amor pelo tempo.
Era-se a vez em que se amaram desmedidamente.
domingo, 24 de abril de 2011
Atentada Tradução IX: Anacreonte
gerōn d’hotan khoreuē
trikhas gerōn men estin
tas de phrenas neazeiUm velho, quando dança,
permanece com cabelo envelhecido,
mas seu espírito rejuvenesce.
trikhas gerōn men estin
tas de phrenas neazeiUm velho, quando dança,
permanece com cabelo envelhecido,
mas seu espírito rejuvenesce.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
Duas historietas e um canto de Tagore
para os amigos que perdi
Numa rua próxima à da minha casa, morava uma benzedeira, que muitas vezes visitei na infância, quando minha mãe julgava que eu estava muito encapetado ou me machucando demais. Era uma senhora negra, que, vendo-nos cruzar o quintal, logo abria um sorriso luminoso, puxava uma cadeira de madeira para um canto sombreado e, colocando-me no colo, fazia umas rezas ao mesmo tempo em que batia na minha cabeça folhas de sei-lá-o-quê.Anos depois, já crescido, resolvi revê-la. A casa ainda existia, embora sufocada por prédios enormes feitos ao seu redor. Toquei o interfone e veio uma mulher, talvez nos seus quarenta anos, possivelmente sua filha ou nora. “Aqui ainda mora uma senhora que benze?” “Sim, mas ela não benze mais.” “O que houve? Ela não está bem de saúde?” “Não, virou evangélica.”
* * *
Não fosse um grande acaso, acho que não teria sido convidado para o casamento de um amigo. Certamente ele ainda se lembrava de mim e das várias coisas que fizemos juntos, mas o envolvimento com a yoga, que começara a praticar alguns anos antes, havia a tal ponto crescido que qualquer coisa não pertencente a esse universo estava sendo deixada de lado. No dia do casório, essa impressão se confirmou: afora a família e uns raros velhos amigos, todos os presentes na cerimônia sentavam-se em lótus e portavam um turbante branco.Confesso que fiquei deveras surpreso com isso, porque tinha dificuldade em imaginar que meu amigo e sua esposa, sempre tão abertos ao mundo, à variedade de experiências que a vida oferece, pudessem ter mergulhado no sadhana em detrimento de tudo o mais. Com certo tom de lamento, saí da celebração meditando algumas questões que permanecem comigo, pois não nos encontramos novamente: por que as trilhas espirituais são tão exclusivistas? Até o amor e a amizade precisam ser submetidos ao crivo da crença?
* * *
Rabindranath Tagore – Gitanjali – 8º Canto
“A criança que está coberta com um robe de príncipe e tem colares de jóias ao redor do pescoço perde todo prazer em sua brincadeira; seu traje refreia-a a cada passo.Com medo de que se desfie ou se desgaste com poeira, ela se afasta do mundo e tem medo até de mover-se.
Mãe, não há ganho algum nesta sujeição ao luxo, se ela lhe veda o contato com a saudável poeira da terra, se lhe retira o direito de entrada na grande festa da vida humana comum.”
quarta-feira, 30 de março de 2011
Francotônica II: Dos Mundos
O Pequeno Príncipe não é só um livro de misse. É cartão-postal, ímã de geladeira, estampa de camisa e, agora também, DVD. Foi o que descobri outro dia, sentando-me junto a duas crianças na casa de uma amiga. Eram seus filhos, de três e seis anos, que estavam quietos no quarto de brinquedos, onde se isolavam do convívio dos adultos reunidos para um jantar. O filme a que assistiam, uma adaptação livre de Saint-Exupéry, era feito de animações e parecia bem legal, a julgar pelos olhos vidrados.Mais tarde, soube que os meninos já o haviam assistido várias vezes. É curioso como as crianças não se entediam, mesmo fazendo reiteradamente a mesma coisa. Terminado o filme, a dupla resolveu brincar: um seria o pequeno príncipe; o outro, a raposa; e o colchão em que um casal de visitas dormiria ficou como cenário, enriquecido que foi com bonecos e caixas.É claro que toda a ornamentação era muito precária, mas os objetos eram apenas ensejo para a imaginação, balizas para definir o campo das aventuras a vivenciar. O fundamental os meninos traziam em si: a capacidade de inventar, de se entregar ao jogo e, terminada a brincadeira, de dele sair. Qualquer criança sabe separar muito bem os dois mundos, a despeito do mergulho profundo no da imaginação.Já nós, adultos, estamos sempre a misturar as estações. Durante a maior parte do tempo, assumimos personagens mais ou menos fictícios e, levando-nos demasiadamente a sério, esquecemos que “coerência”, “prioridades”, “reconhecimento” (e outras tantas fantasias capciosas) são nada mais que peças da brincadeira chamada maturidade. Que desatino! Precisamos urgentemente readquirir o espírito da infância e a argúcia para reencontrarmo-nos a nós mesmos, pois talvez ainda nos seja possível rever as coisas sem o manto com que as cobrimos, nos desvencilhar de nossas projeções e voltar ao mundo real, o B-612.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Com choro e com vela
Lembro-me como se fosse hoje do dia em que uma amiga me falou das carpideiras. Nunca ouvira falar na palavra e sequer imaginava que pudesse haver pessoas que fossem pagas para chorar por outras. Enterro, velório, mas também casamento e despedida, qualquer ocasião é ocasião para elas, desde que lágrimas sejam precisas. Interessante que o substantivo só exista no feminino: carpideiras são mulheres, mulheres que choram.
Num primeiro momento, fiquei muito surpreso e achei um absurdo. “Pagar alguém para chorar no seu lugar? Ou para impressionar terceiros?” Cheguei a supor que era invencionice contemporânea, mas a prática é antiga. Hoje, lendo uma biografia de Marco Polo, me dei conta de que existia numa cidade portuária do golfo pérsico no século XIII, quando se deram as andanças do veneziano: viúvas muçulmanas, que tinham de chorar a morte do falecido durante quatro anos consecutivos, todos os dias do ano, podiam, quando cansadas, recorrer a esse auxílio profissional.
Confesso que gostaria de entender a profissão, conversar com uma dessas senhoras, saber das histórias de lágrimas de crocodilo. Que significado dão à sua tarefa? Quem as contrata? Quanto custa a hora de choro? E, além disso, quando surgiu a prática de carpir? Onde? Como? Por que? Convenhamos: as carpideiras são intrigantes e uma alternativa curiosa para quem se cansou de chorar, já que não dá para delegar a tristeza, felizmente.
Num primeiro momento, fiquei muito surpreso e achei um absurdo. “Pagar alguém para chorar no seu lugar? Ou para impressionar terceiros?” Cheguei a supor que era invencionice contemporânea, mas a prática é antiga. Hoje, lendo uma biografia de Marco Polo, me dei conta de que existia numa cidade portuária do golfo pérsico no século XIII, quando se deram as andanças do veneziano: viúvas muçulmanas, que tinham de chorar a morte do falecido durante quatro anos consecutivos, todos os dias do ano, podiam, quando cansadas, recorrer a esse auxílio profissional.
Confesso que gostaria de entender a profissão, conversar com uma dessas senhoras, saber das histórias de lágrimas de crocodilo. Que significado dão à sua tarefa? Quem as contrata? Quanto custa a hora de choro? E, além disso, quando surgiu a prática de carpir? Onde? Como? Por que? Convenhamos: as carpideiras são intrigantes e uma alternativa curiosa para quem se cansou de chorar, já que não dá para delegar a tristeza, felizmente.
domingo, 13 de março de 2011
Francotônica I: E somos todos tibetanos
Nas andanças da vida, por um golpe de sorte acabei fazendo duas novas amizades. Estava numa conferência, sentado ao fundo de uma velha capela do século XVII, quando um chinês e uma senhora francesa sentaram-se ao meu lado. Por terem chegado um pouco atrasados, acabaram por me consultar acerca do que se passava e essa pequena consulta deu ensejo, na recepção que se seguiu à palestra, a uma conversa calorosa e gentil. Como resultado, fui convidado para um jantar na casa da Madame Villard algumas semanas depois, para o qual Qinghua e eu fomos juntos, já que tomaríamos o mesmo metrô.
A noite foi muito agradável e a conversa, como sempre nos jantares franceses, foi tão longa e variada como a refeição. Um casal de vizinhos da Mme Villard também estava presente e levou consigo seus dois filhos, um ainda adolescente. Marcou-me o quanto todos foram simpáticos e, mais do isso, a gratuidade da gentileza. Que bom que eu, num primeiro momento hesitante, finalmente aceitei o convite.
Daquela noite, porém, destaco um registro especial. É que em determinado momento a conversa passou a tratar da China, migrou para Macau e depois chegou ao Tibet. Qinghua nos contou, da perspectiva que lhe é própria, que os tibetanos aceitam a presença chinesa, pois é ela que assegura o desenvolvimento e “as pessoas querem ter coisas, querem o progresso”. A seus olhos, tudo se passa como se a resistência do Dalai Lama fosse uma exceção, já que o povo habituou-se ao domínio chinês (truculento que seja, acrescento eu) e está mais interessado no avanço material do que na liberdade.
Não emiti comentário algum quando estávamos à mesa, mas confesso que fiquei um tanto triste. Não me refiro à opressão política e ao dirigismo estatal, que me interessam menos do que a uniformização do sentido que damos às nossas vidas: também os tibetanos desejam o progresso, o conforto material... Considero que, mais que a tirania, mais que a violência ou a imposição do silêncio, o pior massacre que vemos na contemporaneidade (e que assola todos os povos) é o massacre do desejo, tolhido pela ilusão do consumo e planificado basicamente nos mesmos objetos. Acho impossível que sejamos felizes centrando-nos apenas nisso e, dada a perda de nossas identidades e diferenças, lamento que caminhemos para um nivelamento amorfo e global, lamento que caminhemos para nos tornar todos tibetanos, isto é, franceses, isto é, turcos, isto é, bolivianos, isto é, senegaleses, isto é, sauditas, isto é, filipinos, isto é, estadunidenses, isto é, zés-ninguéns.
A noite foi muito agradável e a conversa, como sempre nos jantares franceses, foi tão longa e variada como a refeição. Um casal de vizinhos da Mme Villard também estava presente e levou consigo seus dois filhos, um ainda adolescente. Marcou-me o quanto todos foram simpáticos e, mais do isso, a gratuidade da gentileza. Que bom que eu, num primeiro momento hesitante, finalmente aceitei o convite.
Daquela noite, porém, destaco um registro especial. É que em determinado momento a conversa passou a tratar da China, migrou para Macau e depois chegou ao Tibet. Qinghua nos contou, da perspectiva que lhe é própria, que os tibetanos aceitam a presença chinesa, pois é ela que assegura o desenvolvimento e “as pessoas querem ter coisas, querem o progresso”. A seus olhos, tudo se passa como se a resistência do Dalai Lama fosse uma exceção, já que o povo habituou-se ao domínio chinês (truculento que seja, acrescento eu) e está mais interessado no avanço material do que na liberdade.
Não emiti comentário algum quando estávamos à mesa, mas confesso que fiquei um tanto triste. Não me refiro à opressão política e ao dirigismo estatal, que me interessam menos do que a uniformização do sentido que damos às nossas vidas: também os tibetanos desejam o progresso, o conforto material... Considero que, mais que a tirania, mais que a violência ou a imposição do silêncio, o pior massacre que vemos na contemporaneidade (e que assola todos os povos) é o massacre do desejo, tolhido pela ilusão do consumo e planificado basicamente nos mesmos objetos. Acho impossível que sejamos felizes centrando-nos apenas nisso e, dada a perda de nossas identidades e diferenças, lamento que caminhemos para um nivelamento amorfo e global, lamento que caminhemos para nos tornar todos tibetanos, isto é, franceses, isto é, turcos, isto é, bolivianos, isto é, senegaleses, isto é, sauditas, isto é, filipinos, isto é, estadunidenses, isto é, zés-ninguéns.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
- Nota -
Caros amigos e amigas que acompanham o Armadura de Vento,
escrevo para lhes dizer que devo passar um período sem fazer postagens. Não pretendo abandonar o blog, apenas fazer uma pausa, constrangido que estou por um momento de trabalho intenso, que se estenderá até meados de março. Mais do que nos últimos meses, sinto-me inapto para desatrelar-me da opressão dos afazeres e, assim, não consigo obter o ar necessário para alentar o espírito e a escrita.
Sei que alguns de vocês, pessoas conhecidas e desconhecidas, sentirão falta de vir até aqui para ler as postagens e, vez ou outra, comentá-las. No entanto, saibam que falta maior sentirei eu, donde meu sincero desejo de poder voltar à palavra assim que possível.
Com um forte e já saudoso abraço,
M.C.
escrevo para lhes dizer que devo passar um período sem fazer postagens. Não pretendo abandonar o blog, apenas fazer uma pausa, constrangido que estou por um momento de trabalho intenso, que se estenderá até meados de março. Mais do que nos últimos meses, sinto-me inapto para desatrelar-me da opressão dos afazeres e, assim, não consigo obter o ar necessário para alentar o espírito e a escrita.
Sei que alguns de vocês, pessoas conhecidas e desconhecidas, sentirão falta de vir até aqui para ler as postagens e, vez ou outra, comentá-las. No entanto, saibam que falta maior sentirei eu, donde meu sincero desejo de poder voltar à palavra assim que possível.
Com um forte e já saudoso abraço,
M.C.
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