quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Atentada Tradução X: Baudelaire



Petits Poèmes en Prose
XL Le Miroir

Un homme épouvantable entre et se regarde dans la glace.
«  Pourquoi vous regardez-vous au miroir, puisque vous ne pouvez pas vous y voir quavec déplaisir ? »
Lhomme épouvantable me répond : «  Monsieur, daprès les immortels principes de 89, tous les hommes sont égaux en droits ; donc je possède le droit de me mirer ; avec plaisir ou déplaisir, cela ne regarde que ma conscience. »
Au nom du bon sens, javais sans doute raison ; mais, au point de vue de la loi, il navait pas tort. »

Pequenos Poemas em Prosa
XL O Espelho

Um homem horrível entra e se olha no espelho.
Por que o senhor se olha no espelho, já que não pode se ver senão com desprazer?
O homem horrível me responde: Senhor, conforme os princípios imortais de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto, possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.
Em nome do bom senso, sem dúvida eu tinha razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Ultra-Realidade



Caro Marcelo,

não sei quais lembranças você guarda de mim, trinta anos é um belo tempo, perdi amigos com menos de vinte, suicídio, acidente, leucemia, você se lembra?, trinta anos às vezes é mais que uma vida, mas também não é nada, a gente olha pra trás e a infância foi ontem, mamãe cozinhando batatas, a pitangueira no quintal, é desse modo que você me vê, aposto, como quem não viu o tempo passar, digo você para não te chamar de senhor, não faz sentido, tive colegas, lembra?, que queriam morrer jovens, acho de uma burrice inocente, “não adianta morrer”, você é a prova, a velhice é horrível, mas também é ótima, a gente se desapega de bobagens, fica surdo, já não escuta os vizinhos, digo a meus alunos, você ainda repete?, jovens, envelhecei!, eles não entendem nada, sequer se chocam, são plastas, falar não adianta, queria é chutar, tampouco acordariam, mas, Marcelo, meu caro, trinta anos, hoje sou novo, nem tanto mais, mas ainda muito, comparado a você eu sou, subo escadas, tenho estômago forte, têmporas pouco esbranquiçadas, pau duro todo dia de manhã (quase todo, tá, não vou mentir), mas e você?, me pergunto, livros, livros, livros, vinho, filmes, teatro, livros, o que deu isso tudo, essa vida intelectual que, projeto, só se adensou ao longo dos anos, desses trinta? Não digo contemplativa porque soa a monge e monge não trepa, trepa sim, evidente, monge é gente, gente é bicho, deve dar o cuzinho escondido, depois pedir goza na minha boca, esses padres não são mole, pastores também, piores até, mas, como dizia, essa vida, estudo, reflexão, fruição, esse presente de grego, fui eu que plantei, os frutos são seus, o que deu, está suportável? Sinto culpa, você nota, claro, um filho, ao menos um único, não veio, certa vez ainda nos vinte, suspeita de Mariana estar grávida, janeiro, eu de férias, cabeça a 40 celsius, ligo do orelhão, sim, chegou, alívio, fui tomar sorvete, depois ler Tolstói, tirando essa não houve mais risco, sequer tentativa, desejo havia, cambaleante, quero não quero, não quero quero, debati com Duda, brigamos, ela nunca quis, zombava de quem tinha, mas amava os sobrinhos, sobretudo o caçula, lembra?, incoerências, não julgo, admiro. Você sabe, Marcelo, trinta anos, ampulheta com um nada de areia, a gente engrena no trabalho, aparecem as contas, promoções, disputas, planos de vingança, a gente deixa pra depois, ainda mais sendo homem, pra homem esse tempo não passa, a gente observa as crianças, correria, gritaria, catarro, birra, pediatra, complicação, dá um desânimo, mas tem hora que parece que ficou faltando alguma coisa, é o que você sente?, ai, Marcelo, sempre fui hesitante, nunca seguro como a Vanessa, a feminista, lembra?, ela falava ‘há escolhas’, ‘há escolhas’, ‘mulheres, há escolhas’, gritava isso no dia das mães, se pudesse fazia cartaz, ela que nunca pariu nem adotou, ela era cheia de gatos, tinha um marido inteligente, bonito, fiel, risos. Marcelo, eu queria ter filhos, mas pensava muito em mim, é meu defeito, ainda é assim?, narcisismo, mesquinhez, comodismo, tudo menos falta de mulher, elas desesperadas por família, as balzaquianas, um horror, as famílias, não as mulheres, você pensa diferente, aposto, pensamento de velho muda, os buracos ficam maiores, sobram menos coisas pra enchê-los, o pau já não sobe mais, e no Natal, Marcelo, o que você faz, alguém te acolhe, foge pra onde, pra legião dos sem-filhos? Nunca me refugiei nas ilações sobre a condição humana, miséria, fraqueza, tudo muito abstrato, acho que sou egoísta demais, pensava em mim, concretamente, e só, o que era um jeito de pensar em você, se sentiria falta ou não, não me culpe, claro que sei da miséria, todo mundo sabe, o casal que se separa e conta talheres, seis garfos pra cada, seis colheres pra um, cinco pro outro, opa, uma sumiu, então me paga a diferença, o lixo ali na rua, gente catando, ninguém nem tchum, e o totó da madame no filé mignon, não acuso, aceito, olho pra mim, a irritação com meu tio doente fazendo ‘ahhh’, abrindo bem a boca, soltando ar, depois de beber água gelada, ‘aaahhhhh’, aquela coisa esticada, me dá nojo, mais do que comer lavagem, a miséria humana não tem cura, Deus errou, aliás, não errou não, ele tem uma desculpa, lembra do chiste?, a de não existir, mas isso não faz ninguém deixar de ter filho, o que manda é o egoísmo mesmo, nesse ponto não me condeno, a uns manda ter, a outros não ter, fora os que não pensam em nada, humanoides, coelhos que só servem pra empapuçar o mundo, ser plateia de tevê, mas, Marcelo, trinta anos, um jogo de damas, não pense como seria se pudesse recuar as peças, bobagem, eu repetiria as jogadas ou acho que repetiria, muita coisa eu fiz porque fiz, não consegui fazer diferente, fui fraco, covarde, filósofo, é assim que me vê? Às vezes sonho com Mariana, sonho acordado, admito, e você?, querendo que tivesse engravidado, não importa se era adolescência, tudo mundo dá um jeito, hoje eu teria o Celinho, você também, Celinho não, daria outro nome, Bernardo, você teria netos, domingos cheios, o sonho de todos os pais, afinal ter filhos é isso, um sim à vida, apesar da miséria, para quem pensou nela, ao menos um pouco, pouca gente, claro, quem pensa muito não tem filho, fica apenas fantasiando como seria, e se?, e se?, e não sai do lugar, não rompe o próprio mundinho, não goza lá dentro, não tive a sorte, o azar, o acaso chegando de viés, me arrastando além de mim, a camisinha que estoura, a pílula de farinha, uma bobagem dessas e a história era outra, eu era outro, você era outro, melhor, pior, vai saber, é difícil ser solto na vida, amigos casando, os bebês nos carrinhos, festinha de 1 ano, festinha de 2, festinha de 3, docinhos entupidos de açúcar, todo mundo em mesa de plástico, cadeiras que espatifam os gordos no chão, rodinhas de casos, e a gente com a cabeça em Pascal, é difícil ser solto na vida, dizia, a vida parece incompleta, é tão adulto levar os meninos pra escola, mais tarde ter de buscar, depois reclamar que levou e buscou, sofrer com hérnia de disco, não ter nada disso é ser um adulto aleijado, mas ter filhos é abrir a ferida narcísica, mesmo quando não saem burros, mesmo quando saem bonitinhos, a gente derrama sobre eles tantos unguentos, batiza pra ter padrinhos, que acaba dando tudo errado, o bichinho escreve possível com c ou vira cristão, começa a sofrer angústias erradas, pensa que existe salvação, mas do quê, animal?, olha a vaca, imitai a vaca, ela come e caga, tá bom, tem gente que nem come, a mulherada taí na base do yogurtinho, veja o feijão no seu prato, veja sua bosta preta, diga amém, criar filhos não é pra qualquer um não, acho que não era para mim, você me perdoa? Penso muito em mamãe e papai, confesso, eles queriam netos, tiveram, ainda bem, irmão serve pra isso, eu me culpo, você também?, sinto que rompi um pacto, não transmiti a chama, interrompi a viagem da carne, não sei bem o que dizer, é como se os tivesse traído, compreende?, uma quebra de corrente, um jeito de matá-los, de não preservar a memória, tudo que temos, tudo que somos, eu canto o nome deles, mas não deixei aedo, Marcelo, você morto, tudo se acaba, não sou ingrato, nunca fui, aposto que você não é, mesmo trinta anos depois, trinta anos, ainda criança, lembra?, brincava pelado com amiguinhos e depois ficava pensando, pensando, fosse hoje fazia a filosofia do troca-troca e ficava rico, veja que sina, não tinha jeito, pensar é uma peste, só mesmo um deus para me salvar, me salvar de mim, não veio, tenho a miséria, tá bom, melhor que nada, mas ao menos te deixei o trabalho, miséria elaborada, é pouco, eu seu, mas foi o que deu, e a duras penas, o sol lá fora e eu sentado lendo, escrevendo, tem gente que nem isso tem, o desejo de saber, a ilusão do reconhecimento, livros, livros, livros, uns aplausos aqui, outros ali, fátuos, ralos, desafetos desdenhando, amigos torcendo contra, brindando em silêncio os fracassos, a gente perdido no meio disso tudo, pensando se vale a pena, o que vale a pena, o lado profissional, o lado pessoal, filho, filho, e as dúvidas, o comodismo, mais o temor da solidão, o medo de se arrepender, não, não tenha medo, hoje em dia muita gente não tem filho, faremos um condomínio de velhos, vai ser ótimo, os filhos de hoje em dia não ligam pros pais, asilos lotados, velhos há anos sem visita, no Japão, também na Holanda, o cara morre e ninguém nota, passa um mês, aquele fedor mortífero, os vizinhos chamam a polícia, tá lá o corpo em decomposição, ninguém dá notícia, ninguém deu falta, não fosse o cheiro virava pó, morreu de quê?, de insignificância, perto disso a solidão é bálsamo, mas no fundo eu querendo, sempre gostei de criança, inventar brincadeiras, dar cambalhota, agachar pra contar histórias, só que sem aquela prosódia ridícula, sem tratar o pirralho como retardado, mas isso foi pouco, me pergunto se errei, errei?, ter filho é aposta, é como ter fé, só assim pra fazer sentido, e eu não apostei, descrente, não tive peito, fiquei preso em mim, covarde, como tantos amigos, como eles estão?, Marcelo, os livros, eles são passatempo, há quem reze, quem foda, quem pire, tudo a mesma coisa, outros têm filhos, é verdade, a mesma coisa também, no fundo é de fato a mesma coisa, uma forma de lidar com a vida, essa truculência, cada um se safando como pode, com bucetas, rezas, alucinações, bebês, tudo a mesma coisa sim, insisto, um filho rompe o nosso mundinho, mas logo depois se forma outra redoma, apenas um pouco maior, a prisão permanece, a miséria, a gente passa da dama ao xadrez, só isso, outras peças, mais jogadas, mas sempre o mesmo tabuleiro, Deus não é de brincadeira, se crucificou seu filho, imagine o que não faz conosco, é tão infantil chegar a essa conclusão, tenho até vergonha, a gente é que custa a acostumar a sofrer e fica à caça de amiguinhos, de um brinquedo, um sentido, como qualquer criança abandonada. Marcelo, você cresceu?

Do seu,
Marcelo

sábado, 7 de março de 2015

O cego

O cego no sinal, maltrapilho e esquálido,
tateia os carros em busca de moedas.
Embora jovem,
é um pouco corcunda e anda vacilante.
Diria que caminha com medo,
não fosse a cegueira,
não fosse a fome.
Sobre o passeio,
sua blusa de frio,
disposta no espaldar de uma cadeira quebrada,
encontra descanso ao lado de um cabo de vassoura.
Ele próprio, sinal aberto,
recosta-se na árvore perto do poste.
Às vezes senta-se no chão,
puxando os pés para perto do meio fio.
Se reclama da vida, ninguém sabe.
Ninguém lhe pergunta nada,
mal lhe respondem quando estende a mão.
O cego certamente já sabe lidar com o desprezo
e, no silêncio, sofrer sem alarde.
Diferente de nós,
ele vive apenas no escuro.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Duas variações sobre "Aqueles Dois"



É raro uma representação cinematográfica ou cênica superar a obra literária que lhe serviu de inspiração. A meus olhos, contudo, esse parece ser o caso da peça Aqueles Dois da Cia Luna Lunera baseada no conto homônimo de Caio Fernando Abreu. Os quatro atores, num jogo cambiante de personagens, condensam e potencializam a narrativa do drama entre Raul e Saul, funcionários recentemente admitidos numa repartição, jovens adultos que se encontram graças ao acaso de terem se tornado colegas de trabalho. Tal como o conto, a peça é um retrato do amor, mas de um amor contido e transbordante entre dois homens que, tolhidos pelas convenções sociais e pelo medo – tão humano – de se entregar, constroem aos poucos e solidamente uma relação singular. Alquimia incomum, eles transmutam o impulso erótico numa amizade apaixonada (numa paixão amiga, se assim quisermos), cujo traço mais marcante é o desejo ardente que em momento algum se mostra de modo explícito. Sob o manto da amizade, dessa amizade apaixonada, movimenta-se um magma incandescente que jamais encontra erupção.

O meu amor faísca na medula, / pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse./ É todo fome e eis que repele a gula.
Carlos Drummond de Andrade

Para travarem contato, Raul e Saul se valem de subterfúgios laborais (saudações protocolares, a hora do cafezinho, a dúvida sobre um documento); por meses e meses, o vínculo entre eles se faz submetido às formalidades do trabalho, mas não há nunca fingimento, dissimulação – nem entre si, nem perante os colegas. O que se vê é antes prudência, talvez medo ou vergonha, porque ambos sabem da grandeza do que se promete sem saber, todavia, como torná-la realidade. Felizmente, por um novo acaso, agora uma bebedeira numa festa de aniversário de uma colega de serviço, quebra-se o gelo entre eles, que, pouco depois, se dão o direito de trocar telefones. A essa altura Raul e Saul já não podiam suportar a distância que separava as sextas das segundas-feiras (ó eternidade dos finais de semana!): os dias de descanso decorriam em meio à fantasia solitária – mutuamente solitária, aliás – daquilo que um dia poderia vir a ser. Não tardaram, portanto, as trocas de presente, as visitas, as confidências sobre as próprias vidas; tudo, no entanto, sem qualquer contato físico, afora os apertos de mão e abraços amistosos. Não tardaram também os cochichos dos colegas de trabalho, os risinhos de canto de boca, a reprovação daquela amizade apaixonada. Sim, havia preconceito, mas havia muito mais: acerca de Raul e Saul, havia a consciência do amor pulsante e latente que os unia, do encontro entre duas almas. Para os infelizes, o que poderia ser mais intolerável?

Rosa. Rosas. A primeira cor.
Rosas que os cavalos / esmagam.
Orides Fontela