É raro uma representação cinematográfica ou cênica superar a obra
literária que lhe serviu de inspiração. A meus olhos, contudo, esse parece ser
o caso da peça Aqueles Dois da Cia Luna Lunera baseada no conto homônimo de Caio Fernando Abreu. Os quatro atores, num jogo
cambiante de personagens, condensam e potencializam a narrativa do drama entre Raul e Saul, funcionários recentemente
admitidos numa repartição, jovens
adultos que se encontram graças ao acaso de terem se tornado colegas de trabalho. Tal como o
conto, a peça é um retrato do amor, mas de um amor contido e
transbordante entre dois homens que, tolhidos pelas convenções sociais e pelo medo –
tão humano – de se entregar, constroem aos poucos e solidamente uma relação singular. Alquimia incomum, eles transmutam o impulso erótico
numa amizade apaixonada (numa paixão amiga, se assim quisermos), cujo traço mais marcante é o
desejo ardente que em
momento algum se
mostra de modo explícito. Sob o manto da amizade, dessa amizade apaixonada, movimenta-se um magma
incandescente que jamais
encontra erupção.
O meu amor faísca na medula, / pois que na
superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse./ É todo fome e
eis que repele a gula.
Carlos Drummond de Andrade
Para travarem
contato, Raul e Saul
se valem de subterfúgios laborais (saudações protocolares, a hora do cafezinho, a
dúvida sobre um documento); por meses e meses, o vínculo entre eles se faz submetido às
formalidades do trabalho, mas não há nunca fingimento, dissimulação – nem entre si, nem perante os colegas. O que se vê é
antes prudência,
talvez medo ou vergonha, porque ambos sabem da grandeza do que se promete sem saber, todavia,
como torná-la realidade. Felizmente,
por um novo acaso, agora uma bebedeira numa festa de aniversário de uma colega de serviço,
quebra-se o gelo entre eles, que, pouco depois, se dão o direito de trocar
telefones. A essa altura Raul e Saul já não podiam suportar a distância que
separava as sextas das segundas-feiras (ó
eternidade dos finais
de semana!): os dias de descanso decorriam em meio à fantasia solitária – mutuamente solitária, aliás – daquilo que um dia poderia vir a ser. Não tardaram,
portanto, as trocas
de presente, as visitas, as confidências sobre as próprias vidas; tudo, no entanto, sem qualquer contato físico, afora os apertos de mão e abraços
amistosos. Não
tardaram também os cochichos dos colegas de trabalho, os risinhos de canto de boca, a reprovação
daquela amizade apaixonada. Sim, havia preconceito, mas havia muito mais: acerca de Raul e Saul, havia a consciência do amor pulsante e latente que os unia, do encontro entre duas almas. Para os infelizes, o que poderia ser mais
intolerável?
Rosa. Rosas. A primeira cor.
Rosas que os cavalos / esmagam.
Orides Fontela
Nenhum comentário:
Postar um comentário