pra Cia Luna Lunera, na medida do possível
para nós, encharcados
Já
cheguei a pensar que a
solução para meus problemas era me casar. Constituir família,
educar os filhos,
ajudar na manutenção da casa, trabalhar para comprar um apartamento –
todas essas responsabilidades
me tomariam tempo, eu
supunha, e acabariam
por me desviar de minhas angústias, mergulhando-me
numa vida sem maiores inquietações. Entretanto, logo vi que isso era
bobagem. (E, se não me casei, foi por outras razões.) Não acredito mais
que seja possível viver sem angústias. Melhor:
já não acredito que seja possível viver bem sem angústias e, mais do que
me
livrar delas, sei hoje que o desafio é lidar com elas. Num certo
sentido, como
tantas vezes se ouve por aí, o negócio é
“viver, apesar dos
pesares”, “viver, apesar de”.
Esse
me parece ser o mote da peça “Prazer” da Companhia Luna Lunera cuja
estréia no CCBB-BH se deu há duas ou três semanas. Os quatro
personagens, amigos de anos,
encontram-se num apartamento para relembrar e reviver suas histórias,
compartilhar intimidades. À medida que os diálogos
se desenrolam, borrando as fronteiras do tempo e do espaço, os
personagens
começam a revelar suas inseguranças, desencontros, irrealizações, medos.
A um
olhar menos condescendente, tudo talvez pareça angústia-classe-média, de
quem tem emprego e bom salário (um
dos personagens é médico) e, não obstante, vê-se insatisfeito com a
vida. Será? Não, claro que não. Sofrimento, mesmo imaginário, é
sofrimento (ou é só soco no estômago que dói?). De mais a mais, a maior
angústia dos personagens – e de tantos de nós – é o hiato que sentimos
haver
entre a vida que levamos
e a que gostaríamos de levar.
No
amor, no sexo, no
trabalho, na família, talvez até na amizade, quantos de nós não percebem
um
descompasso entre o
que somos e o que poderíamos ser? E quem, percebendo esse descompasso,
não sente um desejo sôfrego pela vida? Um ímpeto de correr como um
cavalo?
De pular no abismo? De se jogar no mar, até de beber da sua água, como
se assim
incorporássemos o
infinito que almejamos? Um impulso para ser o que não somos e que, ao
mesmo tempo, sentimos como sendo nosso eu mais verdadeiro?
A angústia dos personagens que, como nós, buscam uns
viajar pelo mundo, outros ater-se ao trabalho, uns prender-se às miudezas do cotidiano, outros à
espera da amada, é a uma angústia trágica porque decorre de uma cisão: nunca
chegaremos a ser aquilo que não somos e que gostaríamos de ser. O nosso eu
verdadeiro, a
felicidade, a vida realizada não passam de ilusão. Sofremos, portanto, em primeiro lugar e
acima de tudo, por causa da imaginação, por propormos a nós mesmos ideais
inalcançáveis, frente aos quais nossas vidas se revelam mesquinhas; nossas
vivências, menores.
Somos todos homens e
mulheres partidos, partidos
por nossas próprias
mãos e tanto mais quanto somos assombrados pela morte, pela consciência do tempo que nos falta e
faltará. Desejamos ardentemente a vida e,
assim, somos
consumidos pela angústia e pela culpa por não sermos o que cremos ser. Alguns de nós chegam ao desespero e tal é a sede
pela vida, pela vida em máximo grau, que o suicídio torna-se tentador (Cioran:
é preciso estar ávido pelo absoluto para considerar o suicídio). Como o 0 e o 360, o
impulso pela vida encontra-se
com o desejo pela
morte.
Na
nova peça da Cia Luna Lunera,
nenhum dos personagens se mata, mas todos bem poderiam ter se matado ou
flertado mais
claramente com a
morte, como o médico. A angústia, a dilaceração pela distância entre a
vida vivida e a vida almejada, entre o que eu sou e o que eu
supostamente poderia ser, dá o tom da montagem e leva à pergunta: há
saída?
Nos minutos finais do
espetáculo, cuja duração total é cerca de uma
hora e quarenta, os personagens parecem encontrar uma alternativa. No
ápice da angústia, quando nada mais parece fazer sentido, ocorre
uma guinada afirmativa – um Sim à vida – capitaneado pelo médico,
o personagem mais assombrado pela morte (Hölderlin: onde mora o perigo,
cresce
também a salvação). O final da peça é uma epifania, quase uma redenção,
mas que está longe de se reduzir a uma
apologia do prazer. “Prazer”, o nome que foi dado ao espetáculo, pode
levar a
engano quem não percebe que querer uma vida sem
dor é querer o impossível e querer o impossível é negar a vida.
Não, não nos livraremos da
angústia se nos
casarmos ou, pior, se nos esbaldarmos nos prazeres. Nada disso adianta. Se há alternativa que não seja
a morte, é aceitar a vida como um todo e saber dançar conforme a música, se entregar à chuva – do céu ou de
mangueira – quando molhar-se é inevitável.
não vi e provável não verei a peça, gostaria. aí mais uma das coisas que ficam no hiato entre a vida que levo e a que gostaria de levar... adoráveis palavras, como sempre aliás, flávio querido, dura e angustiante reflexão... mas, é preciso ter força e graça, como já dizia o cantador!
ResponderExcluiroi Marcelo
ResponderExcluirsó hoje vi esse seu texto sobre nossa peça!
enviei o link pra todos do grupo!
que riqueza ter acesso à sua leitura! muito obrigado por compartilhar seu olhar!
um abraço