Das obras
que a antiguidade nos legou, umas das mais famosas é o Banquete de
Platão, diálogo no qual vários personagens combinam de fazer discursos sobre o
amor após um jantar na casa de um amigo comum. Cada um a seu turno, os convivas
tomam a palavra para apresentar o que pensam sobre Éros e elogiar, sob diversas
perspectivas, essa divindade que os poetas não haviam louvado condignamente.
Dos discursos, o que mais gosto é o de Aristófanes, um comediógrafo. Gosto pelo
mito que apresenta, o qual pode ser resumido mais ou menos nos seguintes
termos.
Originalmente,
a humanidade possuía outra conformação. Havia seres “duplos”, cada um dos quais
composto pelo que hoje chamamos de dois indivíduos. Existiam homens (h + h),
mulheres (m + m) e, perfazendo a terceira combinação possível, andrógenos (h +
m). Ocorre que esses seres “duplos”, mais fortes e vigorosos do que atualmente
somos, revelaram-se presunçosos e foram punidos por Zeus, que, não podendo
extingui-los, resolveu parti-los ao meio. Como conseqüência dessa divisão,
formou-se uma humanidade povoada somente de homens e mulheres, todos “metades”
do que outrora foram, mas à procura da completude original.
Desde já,
convém reconhecer que esse mito se vale de uma compreensão mais ampla da
sexualidade humana que a expressa, por exemplo, pela Bíblia. A Atenas clássica
admitiu uma vivência do amor que a tradição judaico-cristã jamais autorizou e
essa discrepância se faz notar pelo fato de a homossexualidade ser contemplada
como uma possibilidade legítima. Éros não precisa – e nem deve – reduzir-se ao
vínculo entre um Adão e uma Eva. É natural, no vasto conjunto que compomos, o
conjunto inumerável dos que buscam seu par, que uma mulher se enamore de uma
mulher ou um homem de um homem, o que nos leva a pensar que, fosse nossa
sociedade regida por outro mito fundador que não o do Gênesis,
possivelmente seríamos mais tolerantes frente a quem descobre em si o desejo
espontâneo por alguém do mesmo sexo.
Mas o que
quero destacar do mito, mais do que sua complacência com a diversidade humana,
é a noção de completude, aspiração última de quem ama. Como diz o próprio
Aristófanes, o amor nada mais é senão desejo e procura pelo todo. O amor só
existe e faz sentido porque não estamos inteiros e precisamos, seja de que modo
for, nos unir a um outro eu para recuperar a unidade perdida. Não se trata
apenas, portanto, de ter prazer e sim de restaurar um estado que já não
conhecemos mais, de fechar uma ferida que nunca curaremos sozinhos.
Acontece
que Aristófanes não parece considerar que a restauração da plenitude seja
possível. O máximo que podemos conseguir é, diz ele, uma pessoa “conforme ao
nosso gosto”. Não há aí, contudo, nenhum tom melancólico, mas somente realista,
menos para quem ainda se ilude com a esperança de encontrar um par perfeito.
Todas as vezes que venho aqui fico impressionada com a alta qualidade dos textos. Enquanto leio uma frase não sai da minha cabeça: que blog bem escrito!
ResponderExcluirLi O Banquete há muitos anos e foi bom revê-lo do seu ponto de vista.
Um abraço
Esse mito está em forma de música e parcialmente no roteiro de "Hedwig and The angry inch".
ResponderExcluirUm filme muito bacana que discute essa relação de um ser com a sua outra possível metade que está vagando por ai.
Bom blog!