Não se deixe enganar pela superfície - nas profundidades, tudo se torna lei.
Rilke
É impossível ficar incólume ao Ninfomaníaca do Lars Von Trier. A obra é indigesta, provocativa, bonita (a estranha e singular beleza da dor). Seu grande mérito, porém, é fazer jus à complexidade do animal humano, o que, por outro lado, abre espaço para que o filme seja passível de interpretações distintas. Confesso que li algumas, mas nenhuma me convenceu, nenhuma aborda o ponto que me parece mais importante ou, para ser mais honesto, o ponto que mais me toca: a liberdade, a liberdade do desejo.
Pensemos na Joe, personagem
central, cuja história ela própria narra a um desconhecido que a acolheu após
encontrá-la, num beco
sórdido, surrada e caída ao chão. Considerando todos os
relatos de sua vida sexual, façamos a pergunta que me parece fundamental: em algum momento, por
mínimo que seja, ela escolhe o que deseja?
Joe simplesmente segue o
que lhe é espontâneo. O desejo – nela e em nós – brota sem explicação, como um fado. A liberdade do desejo está fora de
questão. Não existe.
O desejo simplesmente manifesta-se, eclode como
um gêiser sempre à nossa revelia, de modo que, se nos cabe alguma liberdade, é
apenas a da recusa, da negação ou, noutras
palavras, a escolha racional de não o realizar. Nesse sentido, o filme retrata a
oposição entre a razão e o desejo, que se traduz no seguinte conflito: devo me permitir viver o
meu desejo ou devo reprimi-lo?
Tomemos a pedofilia, representada numa única cena. O que dizer de um
pedófilo? Ele deve ser condenado? Do ponto de vista da fatalidade do desejo, a
resposta é não. Se
não houve escolha pelo desejo por crianças, como pode haver condenação? Só faz sentido falar em
responsabilidade quando há liberdade. É por isso, acredito eu, que Joe se compadece do
pedófilo. No fundo, como
ela mesma admite, ela se identifica com ele porque ambos são solitários. De que solidão, entretanto, eles
padecem? Ora, da solidão de possuírem um desejo – pelo qual, ressalte-se, não
optaram – que é rechaçado pela sociedade.
Joe sabe muito bem disso,
dada sua experiência num grupo terapêutico para mulheres viciadas em sexo. Por mais que
tentasse, por mais que chegasse ao ponto de praticamente destruir seu próprio
lar para ocultar os
itens que lhe despertavam desejo sexual,
por mais que portasse uma luva para que não se excitasse chupando os próprios dedos, ela fracassa. Posteriormente, graças à visão de si mesma quando criança, criança de doze anos que teve um orgasmo gratuito deitada na grama, Joe repudia a terapia à qual estava se submetendo e reitera aquilo que de fato
é, como quem aceita o inevitável, como quem deixa de nadar contra
a corrente. O problema, ela percebe, é menos seu desejo e
mais a sociedade.
É justamente aí que emerge a noção de virtude. A rigor, o desejo de Joe
– como o do pedófilo, como o de todos nós – é natural, no sentido de ser espontâneo, não-deliberado. O
problema reside em sua inadequação à
sociedade, que tende
a classificá-lo como desvio, doença ou crime. Sob essa perspectiva, a noção de
virtude ganha uma conotação muito interessante. Não é virtuoso alguém que tem e realiza um desejo socialmente aceitável: isso é fácil, não requer
mérito algum. A virtude reside nos extremos. Só é virtuoso quem tem, socialmente falando, um desejo abominável
e consegue reprimi-lo; quem nega a si mesmo, portanto. A partir dos olhos de Lars Von Trier, toda virtude é heroísmo e, ao
mesmo tempo, tragédia. O resto é sorte, a sorte de enquadrar-se sem esforço no padrão socialmente dado.
Acontece que é inviável uma
sociedade naturalizada, para usar um termo inspirado em Sade, que defendeu às últimas
consequências a naturalidade do desejo. Como todos sabemos, a violência faz
parte da natureza e,
por causa disso, não existe cultura sem repressão. Há quem debata que grau de
repressão é necessário para a constituição da cultura (será que não incorremos numa repressão excessiva?), mas não creio que esse
seja o ponto do Ninfomaníaca. Prefiro pensar que o filme
aborda o mal natural, a liberdade da negação, a tragicidade da virtude; em suma, a
consciência moral, que, no caso da Joe, é maior do que a de quase todos nós.
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