terça-feira, 31 de agosto de 2010

Jornalístico II

“A tabela periódica deve ficar maior: três laboratórios independentes criaram átomos com 114 prótons em seu núcleo. Em 1999, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Nuclear em Dubna, Rússia, afirmaram ter criado átomos do elemento 114. Mas não havia confirmação independente. Agora, dois outros laboratórios também conseguiram fabricar o elemento. (...) As propriedades químicas do elemento 114 ainda são uma incógnita. O elemento pode ser tanto um gás nobre quanto um metal dependendo de seu comportamento.” (New Scientist/ Folha online 24/06/2010 às 18h)
É engenhosa a inteligência humana. Ela inventa coisas: a música, a roda, a guerra, a verdade, a panela, o chinelo... E agora resolveu criar também mais um elemento químico. Será que não bastavam aqueles outrora descobertos e os poucos já sintetizados? Velhos tempos os dos alquimistas, que buscavam o auto-conhecimento na simbólica transformação do ouro em chumbo!

– Mendeleiev, adicionai mais um!, devem comemorar, com um brinde de vodka, os cientistas que primeiro fundiram o cálcio (Z 20) ao plutônio (Z 94).
– Que conquista!, dirão os leitores dos jornais, desorientados como bêbados, mas estupefatos com mais um prodígio feito em laboratório.

Surpresa maior, porém, é não saber o que é esse elemento. Um gás nobre? Um metal? Como assim? Como poderia ser ele duas coisas tão opostas? Não existe uma contradição? E, ademais, se podemos criá-lo, como não saber o que é? Fabricamos um micro Frankenstein? Há que esperar seu comportamento, respondem laconicamente os químicos, que também ainda não sabem que nome lhe dar.

Curioso esse elemento 114. Conhecemos seu núcleo, realizamos sua síntese, dominamos a essência de sua estrutura; contudo, não sabemos o que vem a ser. Imprevisível, ele é um paradoxo. Que tal chamá-lo... humano?

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Incerta Madrugada

É tarde para um homem de labor.
Sou eu, porém, quem resiste ao sono.
Só com o vinho,
que nunca me traiu,
divago
entregue à escuridão.
Estrelas tênues, meus olhos cintilam,
mas nada vêem nem iluminam
– luz de cinzas.
(O presente é eterno e oco.)

A noite adentra o silêncio
e as cigarras zunem, solitárias.
Musas telúricas,
seu canto é mudo, não me revela sinais.

sábado, 31 de julho de 2010

Atentada Tradução VII: Laura Riding

To One About To Become My Friend
Stand off!

I am stone.
You must tear your flesh to excavate my heart.

I am storm.
None can rest with me.

I am mountain.
Toil to the top, be there a solitary.

I am ice.
You must be frozen that I be melted.

I am sea.
I would not give you up again.

If this frightens you,
Stand off! Stand off!

Yet, would you be my friend,
I should be none of these to you.
Para Alguém Prestes a Tornar-se Meu Amigo
Para trás!

Sou pedra.
Tu tens de rasgar tua carne para escavar meu peito.

Sou tempestade.
Ninguém descansa comigo.

Sou montanha.
Vence o topo e torna-te um solitário.

Sou gelo.
Tu tens de congelar para que eu derreta.

Sou mar.
Não te daria a superfície.

Se isso te amedronta,
Para trás! Para trás!

Contudo, se fores meu amigo,
Nada disso te serei.

domingo, 18 de julho de 2010

Infância

pra Marilice Corona,
pela inspiração da pintura

Penso que não é causar escândalo dizer que a infância não existe. Reconheço, claro, a distensão temporal que compreende os primeiros anos de nossas vidas, mas não é a ela que me refiro. Refiro-me à forma como, já adultos, normalmente voltamos os olhos para nossos anos de meninice, na forma como tendemos a pintá-los com cores fortes e imaginárias, transformando a infância em algo bem diferente daquilo que foi.

Uma criança não sabe o que é a infância. Ela não se pergunta sobre a fase que atravessa, não se preocupa em atribuir-lhe sentido. A criança apenas vive. É o adulto que a elabora e, marcado pelas experiências que o tempo lhe legou, constrói-a em contraste com a madureza e as dores inerentes à maioridade. Trata-se de um movimento análogo ao da religião: inventamos um paraíso do qual decaímos e que jamais existiu.

A infância é criação de adulto, cunhada quando se percebe que os desejos mais profundos não se concretizaram nem se concretizarão, que os sonhos foram frustrados, que o decorrer do tempo ceifou as esperanças. Consciente da rudez do real e premido pela nostalgia, o adulto refaz o passado a fim de justificar a própria existência, como quem quer provar que ao menos algo valeu a pena. Adultos que somos, lançamos sobre a infância os faróis da memória e da fantasia para transfigurá-la numa história fantástica, como se, alçando-a à categoria do idílico, pudéssemos redimir tudo que a vida nos tolheu, como se, com uma pequena luz, pudéssemos iluminar o breu.
PS: E quantas infâncias não temos...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Citação V: Mario Quintana

Conta-se que em fins do século passado, num remoto país do Oriente, a viagem da capital à fronteira levava nada menos que trinta dias, e ainda por cima a lombo de camelo. E sucedeu que um engenheiro britânico ali residente, em nome do progresso, resolveu remediar a coisa.
– Enfim – conclui ele, após uma audiência com o respectivo xá, ou coisa que o valha –, construindo-se a estrada de ferro de que o país tanto necessita, a viagem até a fronteira poderá ser feita em um só dia!
– Mas – objetou o velho monarca, que o ouvira com uma paciência verdadeiramente oriental – o que é que a gente vai fazer dos vinte e nove dias que sobram?!

terça-feira, 15 de junho de 2010

Jornalístico

graças a Moacyr Scliar
para os amigos professores
“A Polícia Militar do Pará vai abrir procedimento administrativo para identificar os policiais envolvidos em um vídeo postado no último sábado no You Tube. Nas imagens, os policiais fazem adolescentes apreendidos dançarem o hit baiano “Rebolation”. Para a PM, as imagens constrangem toda a tropa e a ação será punida. No vídeo, três adolescentes aparecem com as mãos para cima, encostados numa parede. Um dos policiais diz que vai gravar os três dançando o Rebolation e prepara o celular para a gravação. Os próprios PMs cantam a música e mandam que os adolescentes dancem. Durante a gravação, mandam os meninos sorrirem.” (CBN, O Globo, 01/06/2010 às 8:16)

Espancamentos e humilhações eles nunca aceitaram. Contudo, nunca se iludiram: eram minoria. E minoria mesmo. Tanto na corporação quanto na sociedade. O usual é bater, maltratar, deixar bem claro para o bandido (mesmo quando é só suspeito) quem manda e quem deve obedecer. Ainda mais em casos nos quais se lida com jovens, que, como todo mundo sabe, estão super-protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O certo – quem há de negar? – é logo dar uma sova para o garoto ficar esperto e tomar vergonha na cara.

Acontece que aquele pequeno grupo, que se recusava a espancar e humilhar, não partilhava desse ponto de vista. A truculência é nociva: deseduca e revolta. Se vivemos numa sociedade excludente, que produz e alimenta brutalidades, o que se precisa é do contrário. Como água sobre o fogo, deve-se combater a grosseria com a delicadeza. Era este seu princípio: nunca alimentar as chamas, mas extingui-las com seu exato oposto, mesmo que isso exigisse pulso firme.

Foi assim até o dia em que tiveram sua ação flagrada, ou melhor, gravada e lançada na internet. Naquela ocasião, tendo em mãos três jovens, eles fizeram o seguinte, como revelou o vídeo: na delegacia, puseram-nos sentados numa mesa bem arrumada, deram-lhes lanche e os obrigaram a ouvir Beatriz à exaustão, sempre na voz de Milton Nascimento. Depois, levaram-nos para fora, junto a um jardim de azaléias, e exigiram que cantassem a música. Os dois que erraram a letra tiveram de abrir ao léu o Viagem da Cecília Meireles e decorar o primeiro poema da página. Aquele pequeno grupo de policiais fazia tudo com rigor para não perder a autoridade, mas com cuidado e finura, embora se ouvisse uma ou outra invectiva.

Um verdadeiro crime, como disse o presidente da ordem dos advogados numa entrevista na TV, já que o episódio causou espécie. “Donde já se viu submeter jovens a isso? Subjugar, torturar psicologicamente? É preciso que se abra um processo administrativo, que se faça valer a constituição!” Não demorou para que os policiais, reconhecidos, fossem afastados de suas funções. Afinal de contas, não se pode coagir ninguém a nada, nem à beleza. Legal é só a detenção, o julgamento, a prisão.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Onírico II

Era setembro. Não te conhecia, embora soubesse de sua chegada. Você vinha de longe, como eu, arriscar a vida no desconhecido. Nunca nos havíamos visto, mas um anseio, uma profissão, um desejo incerto – alguns laços já nos uniam. Era o mistério. Sua mudança efetivou-se. Conhecemo-nos na casa de amigas e o trabalho cuidou de nos aproximar. Também a distância de tudo e todos. Era outubro. Houve um show à margem do rio. Bebemos, rimos, dançamos. Beijamo-nos. Compartilhamos a noite. Era o começo. Dormi nos seus braços e acordei para sempre.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Resposta

Surpreende-me a demanda que freqüentemente chega até mim por parte de meus alunos. “Mas qual é a resposta, professor?” “Não gosto de assuntos que não têm uma resposta exata.” Em classe, contenho-me, mas, entre amigos, confesso sem pestanejar: escuto com tristeza esse tipo de comentário. E a razão é simples: soa-me uma exigência absurda, uma demanda indigna – o que, na vida, possui uma resposta definitiva? Enfrentando a morte, procurando o sentido para a existência, perguntando-se o que é o amor, quem jamais encontrou a resposta final?

Reconheço que um anseio dessa natureza, o anseio pela resolução, seja recorrente, mas não consigo julgá-lo doutro modo exceto como tolo. Mais do que isso, julgo-o reflexo de uma incompreensão da vida. Quem, com sinceridade, poderia dizer que, ao observar o mundo, alcançou algo seguro, exato, permanente? É preciso lembrar que tudo está em movimento, que a mudança é a única realidade? E, se assim é, donde esse ímpeto pela fixidez?

Como professor, nada me resta senão acolher os estudantes e buscar introduzi-los, tanto quanto possível, no universo da incerteza, nossa única morada. Filósofo, repilo a brutal ignorância que é relutar contra a dúvida fundamental de todas as coisas, que é querer uma solução para as grandes questões da vida. Temos de aprender a navegar sobre as águas da perplexidade e do paradoxo, pois o essencial permanece sempre irrespondido. Para as grandes perguntas, a única resposta honesta é que resposta não há.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Onírico

Quando o sol está para nascer
e o orvalho ainda cobre a grama,
a criança desfruta do sonho
de que não se lembrará.

Ela brinca de bola
com amigos desconhecidos
num campo amplo, aberto como a infância.
Seus risos e gritos somam-se aos de seus companheiros
na dança incessante dos corpos de éter.
Nela, como nos outros,
o suor banha o rosto,
o movimento é ágil e leve,
fruto espontâneo dos passos sem cálculo.
Todos os meninos estão absortos
– ninguém olha o longe,
ninguém pensa em ser feliz –
e os pés não cansam de buscar o drible
no jogo – perfeito – em que é desnecessário vencer.

Neste instante, no qual toda a sede
é sede de brincar,
a criança nem desconfia
do que a vigília lhe ensinará:
o sonho é expressão da vida
e sua mais nítida contradição.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Clausura

…e somos de repente uns falsos acordados.
Cecília Meireles
Platão e Aristóteles diziam que a filosofia se inicia com o espanto, que o pensamento se instaura a partir de uma admiração ou surpresa que desarranja nossa visão de mundo e nos impele a reelaborá-la. Posto em xeque o universo dentro do qual sempre vivemos, somos conduzidos, segundo eles, ao caminho da reflexão, como quem busca reavaliar os marcos que balizam as fronteiras do próprio espírito.

É uma empreitada árdua, ninguém há de negar. Muito mais fácil é lançar sob o tapete, tentando abafar com o esquecimento, uma experiência que aponta para o novo, para algo que nunca antes havíamos considerado, para a necessidade de abandonar a zona de conforto que tradicionalmente nos protegeu e, exatamente por isso, nos impediu de crescer. Muito mais fácil é não correr riscos, abrigar-se no discurso do medo e do cuidado, quando precisa-se de coragem para a ruptura.

A verdade é que estamos conformados e, pior, perdemos a abertura para buscar novas formas. Andamos muito comodistas, satisfeitos com as vidinhas que temos e com as fabulações que tomamos por idéias. Se o espanto é realmente a origem da filosofia, como dizem os antigos, não é à toa que vivemos numa época em que se pensa tão pouco. Nada nos comove. Nada nos espanta mais. É de estarrecer.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Atentada Tradução VI: Baudelaire

Petits Poèmes en Prose
XXXIII – Enivrez-vous
Il faut être toujours ivre. Tout est là : c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi ? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est ; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront : « Il est l’heure de s’enivrer ! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous ; enivrez-vous sans cesse ! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. »
Pequenos Poemas em Prosa
XXXIII – Inebriai-vos
É preciso estar sempre ébrio. Tudo se resume a isso: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que abate vossos ombros e vos verga em direção à terra, é preciso inebriar-vos sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas inebriai-vos.
E se às vezes, sobre os caminhos do palácio, sobre a erva verde de um canal, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordardes, a ebriedade já diminuída ou extinta, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que gemi, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: “É hora de se inebriar! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, inebriai-vos; inebriai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.”

quinta-feira, 15 de abril de 2010

De Riso e Giz

Nunca amar / o que não / vibra
Nunca crer / no que não / canta
Orides Fontela

Durante toda minha carreira estudantil, sempre me chamou a atenção o fato de os professores não rirem. Com raras exceções, na maior parte dos casos presas a momentos realmente cômicos, eles sempre mantinham uma feição exígua ou taciturna, como se silenciosamente dissessem que o saber é algo duro, exigente e, portanto, incompatível com o riso e a alegria.

Acho que a academia resiste à alegria tal qual fosse superficial, talvez leviana, indigna de se pôr ao lado de um conhecimento tido como profundo e rigoroso. A felicidade, esta é a impressão que se tem, não passa de uma ilusão dos tolos. E o riso, ora, só é pertinente sob a forma da ironia ou da sátira.

Com a postura de nossos professores, aprendemos, sem que ninguém nos dissesse, que a alegria e também a leveza não calham bem para os que se pretendem intelectuais e eruditos. A intelligentsia deve ser séria. É preciso sempre manter o olhar cinzento sobre o mundo e a vida, a crítica mordaz às “massas”, a rigidez própria dos que são incapazes de valorizar o simples e o imprevisto. Até quando, contudo, esqueceremos que por trás de todo esforço reflexivo reside o impulso para superar a dor de existir e dar-lhe um sentido que nos satisfaça?

Convém evocar Clarice: “a subida mais escarpada e mais à mercê dos ventos é sorrir de alegria.”

terça-feira, 23 de março de 2010

Tempus Fugit


Recentemente, fui acometido por um forte sentimento de efemeridade da vida. Consigo imaginar algumas razões para que tenha despontado com tanta força nos últimos dias, sentimento esse que vez por outra me acompanha, mas sinto-o agora como nunca antes, sinto-o como um desejo candente de viver e desfrutar bons momentos.

Ando cada vez mais descrente de grandes sentidos, epopéias e outros absolutos. Volto-me à vida miúda, às pequenezas do dia-a-dia, e tenho-as em alta estima: um café com a mulher amada, uma caminhada com um velho amigo, uma brincadeira com o primo criança. Já que estamos sob a sombra da morte, o que mais nos resta senão aproveitar os bons instantes?

Todos sabemos, como é comum dizer, que a vida passa, que tudo passa, que todos morreremos, que a vida é breve. Isso se tornou proverbial. Entretanto, de tão batido, perdeu o significado. Falando como papagaios, inconscientes do sentido do que pronunciamos, escapa-nos a tarefa mais importante: integrar o discurso à vida, transpor a louvação do presente da palavra à carne.

Assumir a mortalidade, a finitude de nossa existência, é mesmo algo difícil. Não é à toa que inúmeras tradições valeram-se de artifícios mnemônicos para manter à luz a incômoda verdade: o tempo é fugaz. Um preceito, uma caveira, uma ampulheta, a imagem de nuvens, uma bolha de sabão, mandalas de areia – tudo o que nos indica a impermanência nos remete ao essencial. Só há sabedoria na morte.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Citação IV: Carlos Drummond de Andrade

A Palavra Minas
“Minas é uma palavra montanhosa.” (Madu)
Minas não é palavra montanhosa.
É palavra abissal. Minas é dentro e
fundo.

As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.

Ninguém sabe Minas. A pedra
o buriti
a carranca
o nevoeiro
o raio
selam a verdade primeira, sepultada
em eras geológicas de sonho.

Só mineiros sabem. E não dizem
nem a si mesmos o irrevelável segredo
chamado Minas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Quando o retorno é uma nova partida

Dizem que o bom filho à casa torna. Não sei de onde vem tal ditado, incerto como outros da tradição popular, nem bem o que significa. Penso nos maus filhos: eles não retornam... O que isso quer dizer? Será que abandonam os pais na velhice? Ou perdem suas raízes a ponto de não mais se identificarem com o passado que os formou? Já os bons, esses voltam, mas qual o sentido do retorno? – Quem sabe? Quem saberá?

De certo, apenas o seguinte: só retorna quem partiu, quem ousou ou teve de se separar, quem enfrentou o medo de pôr os pés em terra incógnita, rompendo vínculos antigos, sem saber o que lhe adviria; só retorna quem não deixou a distância corroer os laços pretéritos, quem cativou a boa memória, mantendo acesa a chama do afeto e da falta.

Com o regresso, entretanto, como ficam as novas amizades? As descobertas? Os colegas interessantes? A paisagem até então desconhecida? Tudo que ficou por explorar? E o novo amor? Como fica o futuro que se previa ter, desfeito pela volta à origem? E a coragem para mais uma vez recomeçar, donde há de vir?

É inegável: permanência e volta são, ambas, desafiadoras e dolorosas. Para quem manteve o peito aberto, para quem realmente calcou os pés na nova terra, o retorno implica deixar uma nova casa, a custo constituída, a fim de remontar à velha morada, que não se sabe mais como está. Ficar ou regressar são alternativas imponderáveis e por isso não há, como pressupunha o ditado, filhos maus ou bons. Quando o retorno é uma nova partida, enfrenta-se uma escolha radical: difícil como conviver com a saudade, difícil como dizer adeus.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Reino dos Reis

Ando cansado de ser súdito. Há demasiados reis e rainhas no Brasil. É estafante e infantil: rei Pelé, rainha Xuxa, rei Roberto Carlos, Reiginaldo Rossi, fora os reis Momo, as rainhas da bateria, as rainhas do carnaval, o rei do gado, a rainha do acarajé e os Orleans e Bragança!
(Pergunto-me se entre os indígenas de Pindorama havia soberanos dessa natureza. Desconfio que não. É muita tolice: deve ser herança européia ou invenção jornalística.)
O que há conosco para aceitar tantos reinados? Que estranho ímpeto é esse de acolher soberanos como pais ou deuses? É o anseio sebastianista pelo salvador da pátria? Ou só necessidade de mais ídolos? Por que tanto desejo de ser vassalo? Por que a resistência em assumir a própria história? Por que a recusa da independência? Por que a eterna infância? Ou será o sonho de ter o rei na barriga ou ser a rainha da cocada preta?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Do Barulho

Aprecio o silêncio. Considero-o, por uma série de razões, essencial para viver bem. Não sou o único, mas componho um grupo cada vez menor, infelizmente.

Olhemos nossas cidades: (i) as lojas têm estéreos voltados para a rua, ora anunciando pseudo-promoções, ora estrondando músicas populares, (ii) carros passam tendo o som no máximo, alguns com enormes parafernálias a roubar o espaço do porta-malas, (iii) ônibus e caminhões, de velhos ou mal-feitos, parecem máquinas de ensurdecer, (iv) as pessoas falam cada vez mais alto, sobretudo ao telefone; (v) bares disputam a freguesia aos decibéis; (vi) igrejas evangélicas fazem o mesmo com fiéis; (vii) até alguns postes, outrora mudos, possuem caixas de som a alardear estações desconhecidas. E isso para não falar em vizinhos sem educação, torcida de futebol, foguetes e buzinas fora de hora, sonorizadores de portão, alarmes anti-furto, ano eleitoral, camelôs...

Conta-me uma amiga que, durante um tempo, andou intrigada com um grilo dentro do seu quarto sempre que ia dormir. Coisa estranha, dizia ela, estranha mesmo, pois, por mais que o procurasse, jamais achava o bicho, apenas o ouvia. Daí foi aconselhada a procurar um médico e descobriu que não havia grilo algum. O cricrido era um dano causado pela poluição sonora a que estava submetida, obrigada que era a trabalhar no hiper-centro urbano.

Olhemos para nós: com ou sem cricrido, todos perdemos o sossego. Freqüentemente, nem mesmo em casa temos paz, já que a tecnologia permite às pessoas assistir TV ou escutar música numa altura lastimável. E o terrível é que quanto pior a escolha, mais alto o volume!

Urge reinventarmos a lei do silêncio. Avanço, portanto, uma primeira proposta: acima do tolerável, nada mais que gargalhadas, gritos de desespero, bagunça infantil, som de ambulância, ronco de avião e, para os carnívoros, marteladas no bife. Nos demais casos, multa; repetindo-se o erro, prisão; havendo reincidência, exílio. Custe o que custar, há que se dar fim à zueira! É questão de saúde, como minha amiga comprova.

Olhemos para o futuro: a continuar como está, ou ficaremos todos moucos ou ficaremos todos loucos! E o silêncio, mais do que nunca, será do barulho.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Diabrura

pro Joca

É um alívio descobrir que o diabo existe. Sabendo que está aí, podemos nos absolver dos males que comentemos e nos eximir daqueles que não chegamos a concretizar. O raciocínio é simples: não temos culpa por nossas faltas, pois a responsabilidade é sempre dele, demônio, que nos insufla, sem que percebamos, toda sorte de maus instintos nos quais radica o impulso para o pecado. Não somos nós que temos ira, inveja, afã destrutivo e tudo o mais que nomear não convém. Temos boa índole, sendo imagem e semelhança de Deus, mas o ser de mil faces adentra e contamina nossas vidas, ele que também é ubíquo.

Se cometemos um crime, vemos que nossas mãos o perpetram, movidas, porém, por força externa a nós. Quando nosso desejo é perverso, podemos estar certos: é o diabo que divide a nossa vontade. O demo é terrível e cheio de ardis: esperto e oportunista como salteadores, solícito e promitente como candidatos políticos. Imaginá-lo um monstro é dar-lhe azo para atuar. O demônio é a fonte de água límpida quando precisamos seguir em frente, é a realização de um sonho que não nos pertence. Sorrateiro como só ele, a um só tempo testa-nos e atenta-nos a fim de vencer, incinerando a criança que habita em nós e à qual pertence o reino dos céus.

Ninguém, contudo, deseja o pecado. Pecamos a contragosto. Eis aí nosso grande refrigério, o motivo pelo qual, quando caímos, havemos de ser desculpados. Se erramos sem dolo, por que devemos ter sobre as costas o peso das faltas? Somos falíveis, mas bons. O mal não passa de um acidente, não existe como atributo humano. O que há é o diabo, que nos espreita. E tudo o mais é ilusão.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Visar a Pobreza

Uma pergunta incômoda: quem realmente conhece a pobreza? Não me refiro aos pobres e miseráveis, evidentemente, que hoje compõem quase 50% da população mundial. Esses a conhecem – e bem. Refiro-me aos outros 50%, àqueles cuja sobrevivência não está sob direta ameaça. Quantos desses – quantos de nós – conhecem a pobreza? É desnecessário responder, pois a resposta é óbvia. Há que se perguntar o porquê. Por que apenas poucos? A falta de interesse e a desconsideração com o bem alheio não explicam tudo.

Poucos conhecem-na porque é ocultada. A pobreza sopeia a escória. Não é notícia nem atração turística: vale mais encoberta que exposta. E é por isso que se torna uma questão, tanto moral quanto política, ainda mais relevante. Nossa época é extremamente cruel. Gastamos com guerras e resgate de bancos muito mais do que seria necessário para assegurar alimentação, água tratada, saneamento básico, moradia, educação básica e atendimento médico a todos os habitantes do planeta, como apontam os dados da ONU. Mas o que importa a vida dos pobres e miseráveis, dessas dezenas de milhões? Há melhor ocultação que a morte precoce?

Sob essa perspectiva, o mero fato de manterem-se vivos tornou-se um ato político de primeira grandeza. Espécie de manifestação silenciosa, como negar que o simples existir será sempre uma denúncia da injustiça que não se pode dissimular? Imaginar que vivam e que apareçam, embora raramente, é imaginar que a estrutura que os exclui permanecerá exposta a quem tiver olhos para ver. Quem de nós, porém, se dispõe a conhecê-la?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Citação III: Almuhassin Attanúkhi

pro Geórgias de Betinera
VIZIR AUSTERO E JUIZ LIGEIRO
O vizir Ali bin ‘Iça era austero e rigoroso, e gostava de demonstrar sua superioridade nesses quesitos sobre todos os demais. Certo dia, foi entrevistar-se com ele o juiz Abu Umar, que trajava uma túnica opulenta. Pretendendo constrangê-lo, o vizir perguntou:
– Ó Abu Umar! Quanto pagou por essa túnica?
O juiz respondeu:
– Duzentas moedas de ouro.
O vizir disse:
– Mas eu comprei esta capa e esta túnica que está por baixo dela por vinte moedas de ouro.
O juiz Abu Umar respondeu rapidamente, como se já tivesse planejado a resposta:
– O vizir – que Deus o fortaleça! – embeleza as roupas que usa, não necessitando de excessos no vestir. Todos sabem que ele tem condições de desprezar essas coisas. Nós, porém, nos embelezamos com as roupas e necessitamos de excesso, uma vez que nos envolvemos com o populacho e com pessoas a quem devemos muito respeito, e diante das quais devemos manter a compostura.
Foi como se ele tivesse enfiado pedras na boca do vizir, que o deixou em paz.

[Excerto de Almuhassin Attanúkhi (séc. X) Palestras agradáveis e notícias memoráveis Trad. Mamede Mustafá Jarouche]

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Atentada Tradução V: La Rochefoucauld

Réflexions Diverses – VII. Des Exemples
Quelque différence qu’il y ait entre les bons et les mauvais exemples, on trouvera que les uns et les autres ont presque également produit de méchants effets. Je ne sais même si les crimes de Tibère et de Néron ne nous éloignent pas plus du vice que les exemples estimables des plus grands hommes ne nous approchent de la vertu. Combien la valeur d’Alexandre a-t-elle fait de fanfarons ! Combien la gloire de César a-t-elle autorisé d’entreprises contre la patrie ! Combien Rome et Sparte ont-elles loué de vertus farouches ! Combien Diogène a-t-il fait de philosophes importuns, Cicéron de babillards, Pomponius Atticus de gens neutres et paresseux, Marius et Sylla de vindicatifs, Lucullus de voluptueux, Alcibiade et Antoine de débauchés, Caton d’opiniâtres ! Tous ces grands originaux ont produit un nombre infini de mauvaises copies. Les vertus sont frontières des vices ; les exemples sont des guides qui nos égarent souvent, et nous sommes si remplis de fausseté que nous ne nous en servons pas moins pour nous éloigner du chemin de la vertu que pour le suivre.
Reflexões Diversas – VII. Dos Exemplos

Por mais diferenças que haja entre os bons e maus exemplos, ocorre que uns e outros produzem, quase igualmente, efeitos ruins. Eu não sei mesmo se os crimes de Tibério e Nero não nos afastam mais do vício que os exemplos estimáveis dos maiores homens nos aproximam da virtude. O valor de Alexandre, quantos fanfarrões fez! A glória de César, quantas investidas contra a pátria não autorizou! Roma e Esparta, quantas virtudes selvagens louvaram! Diógenes, quantos filósofos inoportunos fez; Cícero, tagarelas; Pompônio Ático, pessoas neutras e preguiçosas; Mário e Sila, vingativas; Luculo, voluptuosas; Alcibíades e Antônio, devassas; Catão, opiniáticas! Todos esses grandes originais produziram um número infinito de cópias más. As virtudes são fronteiriças aos vícios; os exemplos são guias que nos desviam freqüentemente e nós estamos tão cheios de falsidade que não nos servimos menos deles para nos afastar do caminho da virtude que para segui-lo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Do Desejo por Homero

Hoje, tanto quanto ontem, muitas pessoas desejam ser famosas. É uma aspiração humana e perene, indestrutível como a de vencer a morte. A fama, contudo, tradicionalmente entendida como coroação de um grande feito, tem assumido novos contornos, os quais não se devem aos cantos de novos poetas. O mérito – artístico, científico, esportivo, político, moral, quem sabe até o mérito militar – anda em baixa, anda muito em baixa. Pouco valem as razões para a fama, que se pode ganhar por qualquer motivação, ainda que vil, abjeta, mesquinha. Queremos ser lembrados, queremos ser notados, não importa o porquê.

Hoje, muito mais que ontem, vivemos como se o anonimato fosse desprezível e tentamos a todo o tempo e a qualquer custo angariar a atenção de quem nos cerca. A vida simples e comum, que é a vida da maior parte de nós, foi taxada de ingênua e entediante, de comezinha. Por causa disso, nos aventuramos pelo dia-a-dia com ares de desbravador ou príncipe, quando na verdade apenas fantasiamos a vida ordinária em conformidade com a ilusão com que pretendemos nos enaltecer. Relutamos em ser pessoas comuns.

Vivemos como se fosse preciso ser grande e célebre, como se tivéssemos de redimir o cotidiano, donde o ímpeto para transfigurarmos a nós mesmos em personagens que não somos, inflarmos nossas ações em feitos que jamais faremos. Queremos que nossa história seja memorável, que nossa vida seja uma epopéia, mesmo se não passa de uma presepada.

Vivemos sem saber que extraordinário é ser simples.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Perdoando os Pais

Quanto mais investigo-me, mais me dou conta do quanto trago em mim da criança que fui. Vivo meus dias com a maturidade possível, mas, quando surge o menino, abro os braços e acolho-o. Como compreender-me se recusar escutá-lo? Não anseio pelo amadurecimento completo. Anseio vão, adúltero. Não acredito que envelhecer signifique vencer a infância. Ninguém jamais depurou o passado. Estou com Drummond: “de tudo fica um pouco”.

Pergunto-me se podemos esgotar a infância, se é possível nos tornarmos plenamente adultos. É esse, aliás, o nosso desejo? O que é envelhecer? Qual a finalidade dessa metamorfose a que tempo nos obriga? Além da morte, confronto eterno e próximo, o que a madureza nos impõe?

Desilusões, arrisco-me a responder. Boas e más, grandes e pequenas, incontáveis desilusões. Para servir de exemplo, tomemos apenas uma, talvez a mais pueril, certamente a mais radical: a idealização dos pais. Na infância, imaginamos que são infalíveis, não temos olhos para suas imperfeições, as quais mais cedo ou mais tarde passamos a enxergar, muitas vezes de modo implacável. Reconhecer a finitude de nossa mãe, de nosso pai, eis o desencanto fundamental.

Difícil é admitir que reconhecer-lhes a humanidade não faz com que esqueçamos tudo que supostamente nos teria faltado, não alivia a memória dolorosa das falhas cometidas. O desencanto, lamentavelmente, é incapaz de apagar as cicatrizes. No entanto, ao pensá-los como realmente são, um homem e uma mulher, atingimos o patamar necessário para reavaliar fatos e fantasias. Quem sabe assim, amadurecidos, nos faremos capazes de perdoá-los, quem sabe assim nos permitiremos eximi-los da culpa que insistimos em lhes atribuir, como se ainda fôssemos crianças.