Todos conhecemos Platão, nem que seja por referência ao amor platônico, que ninguém sabe ao certo o que é. De sua lavra, realmente rica e diversificada, desponta (a partir do séc. XIX)
A República, para cujo título, conta-me um amigo helenista, a melhor tradução seria Forma de Governo, do grego
politéia, vertido pelos latinos como
res publica. À parte a ressalva erudita, convém admitir que
A República trata sim das formas de governo, mas também da alma e de muitas outras coisas, como o conhecimento, a educação, a poesia, a música, a imortalidade, as virtudes e que, portanto, talvez não haja título algum que consiga sintetizá-la com perfeição. Seja lá como for, contudo, é correto dizer que ela se baseia numa analogia entre cidade e alma, as quais teriam estruturas homólogas. Tanto uma como outra seriam compostas de três partes: governantes, guardiões e auxiliares; e razão, ira e desejo, seus correspondentes psíquicos.
É claro que uma explicação que faça jus à reflexão platônica e que seja condizente com seus meandros etimológicos deveria entrar em minúcias, mas elas não convêm aqui; elas, ao menos neste instante, não convêm a nós que julgamos o academicismo somente um dos modos do pensar, talvez não o melhor, certamente não o mais criativo. Ressalte-se, pois, apenas uma curta passagem do livro IX na qual Sócrates propõe uma imagem curiosíssima para ilustrar o ponto que Glauco e Adimanto, seus interlocutores em nove dos dez livros da obra, haviam-no incitado a defender: o de que é melhor ser justo do que ser injusto. Imaginemos, diz ele, um ser compósito: monstro policéfalo, leão e homem, sendo humana seu conformação exterior. Todos, vendo-o, logo pensariam tratar-se de um homem comum e não se aperceberiam de que guarda em si um felídeo e um monstrengo insaciável. A imagem presta-se bem a seu intuito: mostrar que o comando cabe ao homem (à racionalidade) e ao leão (ira) o controle do monstro (os desejos) assim como na cidade o governo cabe aos governantes (idealmente filósofos), os quais recebem o apoio dos guardiões no que tange à aplicação das leis. Não devemos nos apressar e concluir daí que Platão propunha a extinção dos desejos, como se fossem todos bestiais. Muito pelo contrário. “Platão não é cristão”, provocaria meu amigo. Tais como os auxiliares na cidade, quer artesãos, quer agricultores, os desejos são fundamentais na alma, necessários mesmo, apenas não devem exceder a dimensão lhes cabe.
Com essa imagem, Sócrates almejava explicitar o maior valor da justiça frente à injustiça. O motivo é o seguinte: no injusto, a razão seria cativa ou dos desejos ou da ira, desarmonia que só poderia levar à infelicidade. Será que alguém imagina poder ser feliz se uma fera ou um monstro guiar-lhe os passos? Vale destacar que aí se encontra materializada a noção de auto-domínio, tão cara aos gregos e em particular a Sócrates. E o auto-domínio tem como essência o auto-conhecimento e o senhorio das paixões.
E é justamente aí que me pergunto, será que realmente convém dominar as paixões? Melhor dizendo: será que quadra manter sempre e inquestionavelmente a razão no comando? Será, interrogo-me, que, ao menos por vezes, deixar os desejos emergir com contundência não poderia revelar-nos novas facetas de nós mesmos? Será que o rigor no auto-domínio não poderia atravancar o auto-conhecimento? Não nos enxergamos mais nitidamente depois de desafiar nossos limites? A libido e outros apetites sedentos nunca teriam nada a nos ensinar, nem sob a forma de uma lição? Será possível conhecermo-nos a ponto de delimitar com exatidão os desejos que nos calham e até onde calham? Será que não nos apequenamos ao submetermo-nos à completa previsibilidade da razão? Será que realmente não cabe à desrazão ou à loucura algum papel relevante na descoberta de nós mesmos?
Gosto de pensar Sócrates como um artista circense, em especial como um domador de feras, sempre tentando imprimir ordem àquilo que, ao menos em aparência, foge à racionalidade. Sei que suas metáforas apelam preferencialmente para a escultura e a medicina, jamais ao circo; mas suponho que a arte circense tenha sido inventada num período posterior ao clássico. Azar dele, que perdeu uma ótima metáfora. Pensemos bem: não é ele como um domador de leões, tigres e outras panteras? Que sabe alimentar a fera até o ponto adequado, que se arvora a controlá-la com maestria? Refletindo nesses termos, fica claro o porquê de ele se recusar a conceder aos desejos qualquer prerrogativa política ou anímica que não fosse a manutenção da subsistência. O leão e as feras do circo equivalem ao monstro policéfalo d’
A República e todos, venhamos e convenhamos, asseveraria Platão, precisam ser contidos para não colocarem em risco seja a cidade, seja a alma, seja o respeitável público.
Todavia, conservo a desconfiança: fustigando de tal modo o leão, não nos arriscamos a domesticá-lo, deformando-lhe a natureza? Não fazemos da fera um mero gato? Sob o manto de um artista da alma, não nos travestimos em domador prepotente e subjugamos o risco e o imprevisto, o tempero do espetáculo? Ao eximir o perigo, não há algo que perdemos, que amesquinhamos? Será que não nos petrificamos naquilo que outrora planejamos ou pensamos ser e esmagamos o que por ventura há em nós de impensável e impensado? Não aniquilaríamos a origem de qualquer revolução possível, de toda mudança profunda e não-calculada? De onde mais poderia emergir o ímpeto para nos demover de nossas estruturas consolidadas? Onde mais encontraríamos um meio de não sermos apenas um felino adestrado e arcaico, se aplacarmos essa força, essa fonte, essa fúria?
“Sem a loucura que é o homem / mais que a besta sadia / cadáver adiado que procria?” Meu velho amigo, nunca o vi recitar Pessoa, embora bem possa imaginá-lo desfrutando desses versos do
Mensagem. Entretanto, em que pese a galhofa, julgo compreender as razões de Sócrates, cujo fim último era propor uma nova conformação social, uma inédita e justa organização política que não podia tolerar os desvarios da vontade, sempre propensas ao descomedimento, à tirania. Porém, mesmo assim, mantenho o questionamento, reitero a interrogação: será que a extravagância, será que o desatino nos podem ser profícuos? Abstraindo-se a harmonia citadina, podemos haurir algum proveito da volúpia ou agressividade? Até quando manter os impulsos submetidos ao chicote implica suprimir uma parte de nós que pode nos alçar a inexploradas regiões psíquicas? As unhas, nossas garras, vamos deixá-las crescer?