segunda-feira, 30 de maio de 2011

Contra a revolução

Para o Carlão,
na medida do possível
Talvez não haja algo mais démodé do que a idéia de revolução. Imaginar que ocorra alguma, como a Russa ou a Cubana, é atualmente algo muito difícil, embora continuemos a viver num mundo injusto. A razão parece-me bem simples: a maior parte de nós está interessada apenas em garantir “o seu” e, no máximo, “o nosso”, quando este nos reserva um bom quinhão.

Confesso, contudo, que a inviabilidade de uma revolução, capitaneada por um líder ou pequeno grupo, sequer me comove. Não acredito nela e, na verdade, mesmo que ocorra, penso que está fadada ao insucesso. Temos de mudar a nós mesmos antes de mudarmos as estruturas, porque, se for para permanecermos como somos, com os mesmos insaciáveis desejos, os mesmos impulsos tolos, as opiniões de sempre, de que adianta estabelecer o novo se continuaremos velhos? Aliás, a sociabilidade com que sonhamos não poderá jamais se manter a menos que nós – e não um poder, um estado, um governo – sejamos seu esteio. Enquanto acalentarmos os valores e práticas que conformam o modus vivendi atual, nenhuma esperança é possível.

Por causa disso, e me perdoem os utópicos de 1917 e 1959, creio que devemos dar cabo das abstrações e lançarmos nossos olhos para o concreto. Que tal, em lugar de falarmos em “pobres”, falarmos nos mendigos que saltamos nas ruas de nossas cidades, nos famintos que batem à nossa porta? Que tal, ao invés de acusarmos a “elite”, acusarmos a nós mesmos, que faríamos o mesmo se invertêssemos as posições? Que tal, pois, sermos como as mulheres, que não parem a “humanidade”, mas dão luz a “marias e josés”?

A revolução é, antes de tudo, uma auto-transformação e o melhor modo de iniciá-la é começar a sermos o que ainda não somos. Muito, muito antes da guerra ou da manifestação, do slogan ou do grito, penso que é o caso de nos voltarmos para o cotidiano e suas miudezas, materializando silenciosamente os ideais que nunca pisaram o chão e de que nunca, a rigor, fomos dignos. Só há uma política de fato revolucionária: a política dos pequenos gestos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Do doce vinagre

A recente beatificação do Papa João Paulo II fez com que eu me atentasse para algo que nunca havia notado. Não, não me refiro à incompreensível distinção entre santo e beato, mas a algo mais prosaico: às sessões de milagres de algumas igrejas evangélicas (milagre com dia e hora marcados?) e a profusão de milagres nessas mesmas sessões (milagres contados às dezenas?). ‘Milagre’ se tornou um termo corriqueiro, repetido à exaustão. De tão falado, aliás, parece até natural, fenômeno cotidiano. Será que não é o caso de reabilitarmos o advogado do diabo?

Seja como for, acredito que, para além do campo religioso, estamos eivados de algo que poderíamos chamar de “lógica do milagre” e que somos muito simpáticos a ela. É que, várias vezes, aspiramos a soluções fáceis e súbitas de nossos problemas, como se fosse possível nos livrarmos das pedras de nossos sapatos por um passe de mágica. Acho que essa é uma boa perspectiva para pensar a loteria, as cirurgias plásticas e muitas outras coisas: de repente, como que por um milagre profano, mudamos de vida, de corpo... E sem nenhum esforço, sem ter de trabalhar, sem ter de fazer dieta, sem ter de comer o pão que o diabo amassou!

O lamentável dessa lógica é que nos colocamos numa posição completamente passiva. Resignados ou desesperados, ficamos postados à espera de um redentor (um mestre, um deus, um curandeiro, a sorte) e sonhamos com a resolução repentina de nossos males, antevendo o gosto do vinho sem notar que a água avinagre-se.

domingo, 8 de maio de 2011

Última Liberdade

É difícil defender, / só com palavras, a vida
ainda mais quando ela é / esta que vê, severina.
JCMN – Morte e Vida Severina
Seria falso dizer que não imaginava que pudesse acontecer. No entanto, isso não significa que não tenha ficado surpreso com a notícia do suicídio de uma colega com quem convivi alguns anos durante minha graduação. Fomos bolsistas de um mesmo programa de pesquisa e, sabendo agora que ela se enforcou, constato que aquilo que sempre se lhe apresentara como uma alternativa acabou tornando-se objeto de escolha.

Confesso que fiquei abalado a tal ponto que optei por não ir ao velório e enterro. Mais do que nunca, talvez por ter acometido uma pessoa relativamente próxima, talvez por ter sido realizado de modo brutal e premeditado, o suicídio calou fundo em mim. Sabemos agora que um enorme sofrimento a remoía interiormente, sofrimento que encontrou expressão na morte voluntária. Agora, porém, é tarde demais.

Não há como explicar o pensamento suicida quando ele se constrói no mais absoluto silêncio e em contraste com condições objetivas que parecem alicerçar uma vida em tranqüilo progresso: formatura, emprego, casa própria, carro novo, casamento. No entanto, pergunto-me se há meios de evitar o suicídio, se há algum argumento capaz de demover quem se encontra na fronteira final.

Avento, inicialmente, o sofrimento que se causará a outros, mas isso me parece insuficiente: o cálculo é óbvio quando a dor que carregamos no peito se torna insuportável. Cogito, em segundo lugar, o argumento do futuro: se sofremos no presente, se temos sofrido há muito, nada impede que nossa vida se torne melhor e que, a partir de um futuro mais ou menos breve, tenhamos dias agradáveis e felizes. Contudo, quando a dor é lancinante, é possível nos apoiarmos num olhar prospectivo? Por fim, interrogo-me sobre o desejo de perfeição tão caro a muitos de nós: frustração, fracasso, impotência, limitação, perda – até que ponto a dor, em suas mais variadas formas, não é potencializada por uma expectativa irreal acerca de nós e do mundo?

É certamente uma grande ironia o fato de que o ato de radical afirmação da liberdade corresponda à máxima negação de si mesmo, mas, frente a uma paixão incandescente, a razão tem pouco a fazer. Se um comentário me é permitido, acho que, se não atuamos dia a dia sobre nossas mazelas e domamos os monstros que nos assombram; se não aprendemos a rir das imperfeições e desfrutar de nossas migalhas; se, em suma, não cuidamos cotidianamente da tênue chama que alumia nossas vidas, corremos o risco de que ela se apague e que nada mais nos reste senão o mergulho na noite eterna.