sábado, 30 de janeiro de 2010

Diabrura

pro Joca

É um alívio descobrir que o diabo existe. Sabendo que está aí, podemos nos absolver dos males que comentemos e nos eximir daqueles que não chegamos a concretizar. O raciocínio é simples: não temos culpa por nossas faltas, pois a responsabilidade é sempre dele, demônio, que nos insufla, sem que percebamos, toda sorte de maus instintos nos quais radica o impulso para o pecado. Não somos nós que temos ira, inveja, afã destrutivo e tudo o mais que nomear não convém. Temos boa índole, sendo imagem e semelhança de Deus, mas o ser de mil faces adentra e contamina nossas vidas, ele que também é ubíquo.

Se cometemos um crime, vemos que nossas mãos o perpetram, movidas, porém, por força externa a nós. Quando nosso desejo é perverso, podemos estar certos: é o diabo que divide a nossa vontade. O demo é terrível e cheio de ardis: esperto e oportunista como salteadores, solícito e promitente como candidatos políticos. Imaginá-lo um monstro é dar-lhe azo para atuar. O demônio é a fonte de água límpida quando precisamos seguir em frente, é a realização de um sonho que não nos pertence. Sorrateiro como só ele, a um só tempo testa-nos e atenta-nos a fim de vencer, incinerando a criança que habita em nós e à qual pertence o reino dos céus.

Ninguém, contudo, deseja o pecado. Pecamos a contragosto. Eis aí nosso grande refrigério, o motivo pelo qual, quando caímos, havemos de ser desculpados. Se erramos sem dolo, por que devemos ter sobre as costas o peso das faltas? Somos falíveis, mas bons. O mal não passa de um acidente, não existe como atributo humano. O que há é o diabo, que nos espreita. E tudo o mais é ilusão.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Visar a Pobreza

Uma pergunta incômoda: quem realmente conhece a pobreza? Não me refiro aos pobres e miseráveis, evidentemente, que hoje compõem quase 50% da população mundial. Esses a conhecem – e bem. Refiro-me aos outros 50%, àqueles cuja sobrevivência não está sob direta ameaça. Quantos desses – quantos de nós – conhecem a pobreza? É desnecessário responder, pois a resposta é óbvia. Há que se perguntar o porquê. Por que apenas poucos? A falta de interesse e a desconsideração com o bem alheio não explicam tudo.

Poucos conhecem-na porque é ocultada. A pobreza sopeia a escória. Não é notícia nem atração turística: vale mais encoberta que exposta. E é por isso que se torna uma questão, tanto moral quanto política, ainda mais relevante. Nossa época é extremamente cruel. Gastamos com guerras e resgate de bancos muito mais do que seria necessário para assegurar alimentação, água tratada, saneamento básico, moradia, educação básica e atendimento médico a todos os habitantes do planeta, como apontam os dados da ONU. Mas o que importa a vida dos pobres e miseráveis, dessas dezenas de milhões? Há melhor ocultação que a morte precoce?

Sob essa perspectiva, o mero fato de manterem-se vivos tornou-se um ato político de primeira grandeza. Espécie de manifestação silenciosa, como negar que o simples existir será sempre uma denúncia da injustiça que não se pode dissimular? Imaginar que vivam e que apareçam, embora raramente, é imaginar que a estrutura que os exclui permanecerá exposta a quem tiver olhos para ver. Quem de nós, porém, se dispõe a conhecê-la?