terça-feira, 30 de novembro de 2010

Em busca do grito

Recentemente, duas notícias me incomodaram profundamente. Refiro-me à agressão sofrida por uma mãe-de-santo no sul da Bahia, humilhada por policiais fardados (ela foi esbofeteada, algemada e obrigada a sentar-se num formigueiro) e ao ataque de jovens de classe média a transeuntes na avenida paulista, subjugados a socos e cacetadas por supostamente serem homossexuais.

São dois crimes de ódio, não resta dúvida, ou crimes de bestialidade, como talvez devêssemos chamá-los, se por meio dessa palavra exprime-se com mais clareza o horror de sua brutalidade. Trata-se de algo abjeto e inaceitável, injustificável sob qualquer perspectiva. Contudo, surpreende a pouca repercussão que obtiveram: será que nos tem escapado a magnitude dos crimes dessa natureza – de ira gratuita e covarde – cada vez mais recorrentes?

Não penso aqui nos parentes dos criminosos ou seus correligionários, que tentam mitigar esse tipo de violência, caçando atenuações onde atenuações não existem. Penso nos outros, nos muitos mais, que ouvem e se calam: calar-se frente ao absurdo não é uma forma de aceitá-lo? A indignação, emudecida no peito, é ainda indignação?

Façamos, pois, um ligeiro exame de consciência: fosse dada a nós a tarefa de ir à rua sempre que algo nos revoltasse, quantas manifestações faríamos? Em outras palavras: quantas idéias, atos, sentimentos nos geram repulsa e verdadeira objeção? Se a cólera e a covardia não nos movem, o que mais nos moveria?

Arrisco um palpite na tentativa de entender a apatia: não é que não compreendamos o mal ou tenhamos perdido o poder de reconhecê-lo. Ao contrário do que muitas vezes escuto, discordo da tese que a violência, de tão banal e corriqueira, tenha se integrado à vida como algo normal. Nós ainda (ao menos ainda) a identificamos e repelimos. O problema me parece ser outro: termos perdido a capacidade de ser afetados pela violência, isto é, de nos emocionar e demover, já que, cada vez mais individualistas e imediatistas, só cuidamos do que nos atinge diretamente.

Se andamos emudecidos (e, portanto, coniventes) com o ódio e a covardia, se nos falta o impulso para o grito, se não nos interessa reivindicar o bem alheio quando o nosso não está diretamente em jogo, é porque nos embrutecemos e isolamos. Tornamo-nos incapazes de nos compadecer e, sem compaixão, despreocupamo-nos dos outros a ponto de não sentirmos a crueldade de nossa indiferença.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Pathos

pra Lídia,
pela oportunidade
Recentemente, recebi um convite muito honroso para participar de uma disciplina sobre diáspora africana e pós-colonialismo. Como não tinha nada a palestrar a esse respeito, propus-me a falar sobre etnocentrismo, tomando como ponto de partida o célebre Dos Canibais de Montaigne. Essa tarefa, para a qual não tinha nada pronto, levou-me a fazer uma série de leituras e percorrer campos que, até então, somente namorava. Foi ótimo visitar expoentes do evolucionismo cultural e topar com A Conquista da América do T. Todorov.

Passo a passo, à medida que progredia na preparação e nas descobertas, a urdidura de argumentos e idéias foi se fazendo. Quando me dei conta, já tinha em mãos alguns problemas bem costurados e uma formulação aceitável dos desafios a que conduziam. Obviamente, não erigi nenhum grande constructo, mas, em filosofia, penso que é interessante darmo-nos o direito de buscar não apenas a sustentação de teses, mas a explicitação de irresoluções. Por instinto e princípio, aliás, desacredito em sistemas e, entre uma demonstração e um desafio, pendo inelutavelmente para esse último, ainda mais quando é o caso de conciliar diferença e hierarquização, identidade e igualdade.

Acontece, contudo, que o velho Drummond bateu à porta... Desta vez, menos para perturbar e mais para esclarecer. Lendo e pensando sobre a questão da alteridade, veio-me à memória o Destruição (do Lição das Coisas), que começa assim: “Os amantes se amam cruelmente / e com se amarem tanto não se vêem. / Um se beija no outro, refletido. / Dois amantes que são? Dois inimigos.” Em quatro versos, o paradoxo: a máxima proximidade é também o maior ocultamento.

– Como, então, conhecer o outro?
(Silêncio)

No encontro com os alunos, partilhei o poema e o espanto, mas não falei do trágico.