sexta-feira, 24 de julho de 2009

De como entender Zezé di Camargo & Luciano

Não tenho televisão e nem pretendo ter. Quando não morava só, entretanto, às vezes assistia um ou outro programa na TV de casa: nos momentos em que não queria fazer nada, punha-me a zapear na expectativa de encontrar algo que não fosse pura estupidez ou puerilidade.

Certa vez, acompanhei uma entrevista com a dupla Zezé di Camargo & Luciano. Do que disseram, ficou apenas uma mísera lembrança. Interrogado sobre o critério de qualidade de suas composições (certamente a pergunta foi feita noutros termos, mas asseguro não trair o sentido), Zezé saiu-se com uma resposta direta: o arrepio. Quando uma composição o toca a ponto de arrepiá-lo, eis então uma canção boa. (Observo, porém: não consegui detectar se “boa”, naquele contexto, significava “de sucesso de público”.)

Achei curioso o meio por ele descoberto para avaliar suas próprias composições. E isso porque nada do que eles fizeram, ou melhor, nada do que conheço que fizeram causou-me a menor comoção. Nunca achei que retratassem satisfatoriamente qualquer vivência com a qual pudesse me identificar.

Tempos depois, pensando sobre o resquício que me ficou daquela entrevista, dei-me conta de que a expressão de meus sentimentos se faz a partir de referenciais distintos. A fórmula de meus amores e dores, a manifestação de minha angústia, o lamento pelos desencontros – choro e rio por meio de outras palavras e ritmos, foi o que concluí. Minha sensibilidade pinta-se com outros tons e é por isso que minha vivência encontra melhor representação por meio de outras vozes, quando não apenas pelo silêncio.

Ouso pensar que há formas mais ou menos sofisticadas do sentir e do exprimir-se, mas não tenho cacife para elevar essa opinião a um estágio fundamentado. Em todo caso, reconheço a existência de outras expressões da sensibilidade e me parece ser essa a razão do sucesso disso que ora se chama sertanejo (totalmente desvinculado do que o sertão de fato é). Tenho como inegável que Zezé di Camargo & Luciano conseguem comunicar-se com um grande público, traduzindo e formando uma sensibilidade comum e que ocorre de não ser a minha. Sinceramente acredito que Zezé, autor de várias das canções da dupla, tenha sido verdadeiro quando disse que seu critério de composição é o arrepio. Tendo inclusive a estar de acordo. O que nos diferencia é seu significado. Num caso, emoção. Noutro, indulgência.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Critério Tristeza

Com uma freqüência variável, mas sempre sem grandes intermitências, percebo em mim uma tristeza que não sei explicar. Incapaz de detectar-lhe a causa, sinto-a, no entanto, bem presente em mim, pois que meus olhos miram o chão e minhas costas levemente se curvam sob um fardo invisível. Tristeza diáfana, sei que não tem um motivo concreto, sei que não emerge de nenhum outro acontecimento senão do fato de estar vivo.

Insinuações já ouvi de que se trata de doença, leviandade dificilmente igualável. Há quem diga que sou melancólico, classificando meu humor ao modo dos antigos, que haveriam de atribuí-lo à bile negra. De minha parte, não almejo explicá-lo de maneira definitiva, porquanto parece-me claro que a vida – mesmo quando verdadeiramente feliz – comporta um traço de dor.

Vivemos, contudo, um tempo em que é imperativo ser feliz, tempo no qual a alegria se configurou num manto ostensivo e opressor. Tornou-se obrigatório aparentar contínua felicidade e suspeito haver tolos que se julguem realmente bem-aventurados, por certo os mesmos que concebem a tristeza como patologia. Farsa, auto-engano, caráter infantil, superficialidade. Muitas palavras poderiam designar tal ilusão.

De meu temperamento, do qual colho frutos ora mais, ora menos interessantes, extraí um metro que faço questão de manter a mão: a radical desconfiança dos que nunca se entristecem. Desconfio de que tais pessoas sejam incapazes de travar conversas íntimas e aprofundadas uma vez que menosprezam a introspecção, às custas da qual tentam inscrever em seus rostos um sorriso que não lhes pertence. E como conviver com quem vive envolto na névoa da felicidade contrafeita?

Permito-me estar convicto, a despeito de qualquer rasgo melancólico, de que existem pessoas às quais não cabe partilhar minha intimidade. Metro em punho, distingo-as recorrendo à tristeza, pois sei que quem desconhece a dor não tem meios para me compreender.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Atentada Tradução II: Ángel González

El otoño se acerca
El otoño se acerca con muy poco ruido:
apagadas cigarras, unos grillos apenas,
defienden el reducto
de um verano obstinado en perpetuarse,
cuya suntuosa cola aún brilla hacia el oeste.
Se diría que aquí no pasa nada,
pero un silencio súbito ilumina el prodigio:
ha passado
un ángel
que se llamaba luz, o fuego, o vida.
Y lo perdimos para siempre.

O outono se aproxima
O outono se aproxima com muito pouco ruído:
apagadas cigarras, uns poucos grilos,
defendem o reduto
de um verão obstinado em perpetuar-se,
cuja suntuosa cauda ainda brilha no oeste.
Há quem diga que aqui não passa nada,
mas um silêncio súbito ilumina o prodígio:
passou
um anjo
que se chamava luz, ou fogo, ou vida.
E o perdemos para sempre.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Desnorteando

pra Martinha, universal
pra Bárbara, batuque e garra
Há alguns anos, um amigo foi à França passar a lua-de-mel e, tendo voltado, não hesitou em contar-me: “Conheci Paris e voltei colonizado”. É engraçado, mas acho que não estava brincando. Creio que, mesmo sem perceber, sintetizou um sentimento comum a muitos de nós, pretensamente letrados e educados em boas escolas.

Acompanho vários amigos e conhecidos partirem para a Europa ou Estados Unidos a trabalho ou estudos. Sempre com orgulho e certas vezes soberba, vejo-os organizar a mudança e freqüentemente acalentar a expectativa de fincar pé nas bandas de lá. Tudo corre como se tivessem encontrado a chance de habitar o centro do mundo – “onde tudo acontece” – e pudessem enfim tomar parte no que há de mais contemporâneo em todo o planeta. Nas festas de despedida não é incomum entrever um misto de admiração e inveja por parte dos que permanecem. Parece-me que vários dos que ficam nutrem o mesmo desejo de “conhecer o mundo”, ainda que muitas vezes esse ‘conhecer’ signifique pouco mais que deslumbrar-se e o ‘mundo’ mal se estenda além do Mediterrâneo e dos Urais.

Reconheço as possibilidades que alguns dos países do norte oferecem. Reconheço também a ambivalência dessas possibilidades, sempre crivadas pela pecha de estrangeiro, quando não pelo opróbrio xenófobo. Só não entendo o frisson causado por Roma, Nova York, Berlim e companhia limitada. Desconfio que, tal como nos centramos no sudeste do Brasil e na zona sul de duas de suas capitais, centramo-nos também no velho continente e na América (América?) como se fosse um referencial irredutível, para não dizer redentor. Crianças, é como se fosse preciso nos submeter a um rito mágico, estranho e estrangeiro, para adentrarmos a idade adulta. Queremos ser modernos, pós-modernos, bem-sucedidos, antenados (sabe-se lá mais o quê) e agimos como se apenas no exterior pudéssemos atingir tal status. Olhamos nossa terra como arcaica ou rudimentar, donde o desejo de deixá-la, nem que seja temporariamente. Mendigamos bênçãos alheias ao invés de, aqui e agora, fazer acontecer.

É fato: ainda estamos colonizados e nos comportamos como se viver em nossa pátria fosse viver em degredo. Pode parecer estranho, mas é preciso descobrir o Brasil.