domingo, 25 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada V

Se alguém chegasse em mim e dissesse fale para que eu possa te ver, eu tomaria um grande susto e um belo gole de vodka antes de responder. Não há uma resposta pronta para um pedido dessa natureza e, por essa razão, somos retirados da zona de conforto da previsibilidade. Podemos conversar? Quero te conhecer. Qual é seu nome? O que faz da vida? Aceita uma bebida? Me beije! – tudo isso é esperado, como o conjunto de possíveis respostas. Entretanto, o que dizer se pedirem que nos mostremos, que exponhamos algo íntimo? Que réplica dar a alguém que deseja se aproximar de nós não apenas fisicamente?

Sei que esse pedido causaria espécie e tornaria ridículo quem dele se vale. Na balada, só mesmo alguém muito fora do padrão receberia com gosto uma aproximação desse tipo, mas a verdade é que, seja na noite, seja no dia, é bem difícil responder a uma demanda como essa. Por conseguinte, é leviano rotular as pessoas que freqüentam a noite como superficiais, fúteis, ocas. Elas simplesmente aceitam partilhar um modo de comunicação em que reina a visualidade, adentrar um ambiente cuja tônica é a supressão do diálogo. Nada mais. As pessoas da noite são sim superficiais, fúteis, ocas, mas não mais (ou não muito mais) do que todas as outras. No fundo, devemos reconhecer que a capacidade de expor-se verdadeiramente (e não só exibir-se) é bastante rara, independente de onde estivermos.

Penso que as boates apenas condensam – e explicitam – o que vivemos corriqueiramente: a dificuldade de dialogar, de nos expormos, de penetrar e deixar que outros penetrem no campo recôndito de nossos medos, do que nos alegra ou faz sofrer, de nossas expectativas mais profundas para a vida. Abrir-se, compartilhar a intimidade – como é difícil! É claro que a arquitetura da balada admite uma série de mascaramentos, mas quantos também não são possíveis à luz do dia? A diferença entre o dia e a noite talvez não passe das máscaras com que cobrimos nossos rostos. Seja no trabalho ou nas festas, em casa ou na rua, estamos sempre a nos esquivar ou a nos exibir. Falar daquilo que cala fundo em nós e realmente ouvir o que os outros têm a dizer é tarefa e conquista de poucos, pouquíssimos. Assim, parece-me inexistente a clivagem entre noite e dia ou balada e mundo, pois é irrisória a diferença na nossa postura em cada um desses dois momentos. Em ambos os casos, estamos a léguas de ser capazes do essencial: a comunicação profunda, o encontro livre e desarmado com o outro, seja amante ou amigo. Para quem olha a noite com desprezo, eu digo:

– Não nos iludamos: o mundo é uma balada.

sábado, 17 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada IV


Acho muito engraçadas as descrições de festas. Todas miseravelmente parecidas: os mesmos apelos, as mesmas palavras, o mesmo espírito e a mesmíssima tentativa de ser interessante, leve, divertido, único. Será que alguém leva aquilo a sério? Não sei, não tenho como saber, mas essa é uma resposta irrelevante, porque duvido que quem freqüenta a balada realmente espere algo novo: é sempre mais do mesmo, estando a variação resumida ao acaso dos encontros e desencontros.

A questão que se coloca, aos menos para os desavisados como eu, é a seguinte: como ser diferente? Como demonstrar uma singularidade a fim de fazer-se notar por alguém que também não se enquadra na massa amorfa? Não me refiro à alternativa de destacar-se com uma roupa de marca, tatuagem à mostra, óculos com armação chamativa – soluções tão comuns (de novo, tão iguais) nesses ambientes em que se suprime o diálogo em prol da supremacia do olhar.

Essas são soluções bastante coerentes, devo reconhecer, pois a comunicação reinante na noite é a visual. A arquitetura da balada – ruído acachapante, estímulo rítmico e jogo de luzes – obriga que as interações se estabeleçam a partir do corpo e do movimento (da aparência, enfim), donde o sentido de sobressair-se por meio de algo que possa ser visto. Adotar essa estratégia, porém, significa mergulhar no modus operandi da noite e não, a rigor, diferenciar-se.

Ao que me parece, é impossível distinguir-se na noite de uma maneira que não seja, como tudo o mais, previsível. Se o contato entre duas pessoas há de ser intermediado exclusivamente pela aparência, não há escapatória da visualidade. A única saída para de fato distinguir-se ou encontrar alguém diferente seria reabilitar o diálogo, justamente o que a noite não permite. Em outras palavras: a única saída seria sair da própria noite ou, ao ser abordado por alguém ou chegar numa pessoa interessante, comportar-se de modo absolutamente inusual para os padrões da balada: conversar longamente, talvez citando, para dar início ao papo, a frase que um grego antigo dizia às suas pretendentes: fale para que eu possa te ver.

sábado, 3 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada III

Die Schlange geht weiter. A fila anda, até em alemão. Quem não sabe disso? A cada final de semana, às vezes a cada noite, às vezes numa mesma noite, as pessoas têm ao lado alguém diferente. São os encontros e desencontros que os DJ’s promovem ao fazer as peças se movimentarem nessas caixas que chamamos boates. Tudo muito corriqueiro, coisa que não causa espanto, mas que dá ensejo a religiosos radicais para dizer que a balada é uma instituição demoníaca. Quem nunca ouviu as caretíssimas referências a Sodoma e Gomorra?

Considero-as caretíssimas porque, em primeiro lugar, são ditas de fora, por alguém que nunca experimentou aquilo que critica e, em segundo, porque erram o alvo completamente. Não sei se liberdade sexual e promiscuidade são a mesma coisa, mas é certo que os religiosos continuam a tomar a castidade como valor, o sexo como tabu, e não conseguem conceber que o beijo e transa tenham se tornado diversão: na noite, o prazer está livre do peso do pecado.

Não faço apologia dos excessos em que, vez ou outra, todos nós incorremos, mas julgo impossível compreender a balada sem reconhecer o fenômeno da substituibilidade, da fila que anda. Trata-se, como se diz, de um fato, fruto do gosto pela novidade e da urgência na satisfação do desejo. O que mais poderia resultar de tal amálgama senão o contínuo rearranjo dos pares que se formam na noite?

A interrogação que me coloco, e que me parece importante, é se o hábito do não-envolvimento poderá um dia ser quebrado (porque o prazer, ora, ele não é um mal!). Será que alguém, depois de anos desfrutando do descompromisso, conseguirá envolver-se com outra pessoa? É que, quando saímos pra balada, não importa muito com quem vamos ficar, importa mais o alívio da vontade que nos move. É por isso que, por um lado, é tão fácil encontrar alguém e, por outro, tão fácil descartar. No fundo, não nos voltamos a uma pessoa em particular (como ocorre no amor), mas a uma pessoa qualquer, desde que atenda aos requisitos mínimos, normalmente físicos, para nos satisfazer. Fazemos do outro um objeto, como já sabemos, e pouco nos importamos com o que sentirá no dia seguinte.

Acontece que essa desconsideração ocorre nos dois sentidos: tal como nós, a pessoa que encontramos na balada queria satisfazer suas próprias vontades, também estava centrada apenas em si mesma, fazendo do outro um instrumento para seu próprio prazer. E o que poderá resultar daí?, pergunto-me. Considerando o descaso e eventual malícia das interações da noite, que crosta não haverá se formado em nós para nos proteger do inevitável vazio, da falta de cuidado e diálogo, da ausência de um afeto que sobreviva ao tesão? Será que o amor, caso um dia surja, conseguirá romper essa crosta? Depois de anos na toada hedonista-individualista, seremos um dia capazes de nos libertar da escravidão de nossos próprios desejos? Seremos um dia capazes de amar, de tratar o outro como sujeito? Ou será que a fila vai andar eternamente?