sexta-feira, 24 de abril de 2009

Philia

pro Daniel,
pelo que me permite ser
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” É célebre a primeira estrofe do Poema em Linha Reta de Álvaro de Campos, o qual possui, acredito eu, uma imensa capacidade de se fazer compreender. Creio que entre nós a experiência da desolação é corrente. Daí a limpidez dos versos do polivalente Pessoa, que nos expõem o incômodo de não encontrarmos alguém que, em meio às cenas e ostentações cotidianas, compartilhe nossas fraquezas. “Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? // Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Retomo a pergunta: onde há gente no mundo? Gente como a gente, como normalmente se diz? Reles, porca, grotesca? Ridícula, absurda, submissa e arrogante? Fracassada, perdida, impaciente? Onde está toda essa gente senão em toda parte, disfarçada pela glória, grana ou pela lábia? Atuando no palco do dia-a-dia? Onde está toda essa gente senão em nós? Dentro de nós? Ou será que apenas os outros se ocultam sob variados papéis? “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana”, esse era o almejo de Álvaro de Campos, que traduz magistralmente o anseio de todos nós. Impressiona, contudo, o quão pouco nos revelamos – mesmo para nós próprios. Não raro nos dissimulamos a ponto de nos perder por completo, deixando a máscara colar-se ao rosto, a fantasia se fundir à pele. Impressiona nossa empáfia, nosso poder de representar, nossa dificuldade em admitir quem somos, sobretudo perante conhecidos, frente aos quais tendemos a inflar o ímpeto da impostura.
Entretanto, a amizade existe. E para os amigos, nem que seja para um único amigo, somos capazes de angariar forças, nos descortinar e nos dispor à escuta. (O amor protege.) Singelamente, num espetáculo conjunto, vamos nos sucedendo nas falas e ao fim os enredos interiores acabam por ser percorridos. Toda nossa trama é dita e se desvela. A expressão, entrecortada por silêncios, é perfeita e virgem. Amigos, tocamos a raiz do drama, irmanados que estamos a nosso étimo: pó e mistério. Eis que nasce nova urdidura. Não há mais personagens, nem sentido na afetação ou figurino. Bastam a palavra e os atores, agora transfigurados em homens, despidos sob mútuo olhar sem qualquer constrangimento.

3 comentários:

  1. Querido amigo,
    Faz parte da amizade a rara possibilidade da verdadeira comunicação, que mais do que ninguém você me apresentou e tem apresentado. A sua capacidade absolutamente singular de ouvir e sentir me faz pensar por vezes que você me compreende mais do que eu próprio, que você sabe transformar em sentimento translúcido o que em mim é apenas palavra opaca (como é o caso recente do Pessoa e de tantos mais). Seu texto me emocionou muitíssimo, ele despe a nossa amizade tanto quanto o seu olhar me despe o espírito, abrindo-se e revelando-se de modo tal que antes eu julgaria impossível.

    Com um forte abraço,
    Daniel Arelli

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  2. Marcelo Centauro,
    Acabei de ler o texto. Escovei os dentes, e estaria deitado lendo um livro, se não sentisse a súbita necessidade de dizer o que digo agora. Li o texto da mesma maneira que se olha um espelho. Tenho eu relação igual, ou extremamente parecida, com um amigo que você conheceu. Amigo, que pelo menos uma vez por manhã de dia útil, me permite arrancar por completo minha máscara para uma conversa que se assemelha muito às discussões da "oficina" que temos toda quinta. Acho que não encontrei ainda maneira melhor de descrever esse sentimento do que como você fez.

    Obrigado,
    Artur Bicalho

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  3. Já faz alguns dias que procuro por alento...Qualquer coisa que me faça sentir melhor.
    Parece que o consolo fugiu de mim.
    Por que? Por que?
    Tudo tornou-se obscuro, frio, cansativo, dolorido... e poucas lágrimas.
    Autodiagnostiquei como uma retrospectiva inconsciente, ora consciente, de uma vida incerta e faltosa.
    Hoje de manhã acordei com uma ligação inesperada, após 10 minutos de diálogo continuei sentada com a vã esperança que aquelas palavras que ouvi não se escondessem na mimha memória. Gostaria de ouvi-las novamente,novamente...
    À tarde recebi uma visita. E agora li o Philia, por acaso.
    O conforto começa aquecer-me.
    Eles são meu ponto forte e fraco. MEUS AMIGOS!
    Gostaria de descrevê-los, mas...
    Apenas declaro que eles são verdadeiros anjos no meu céu. MEUS POUCOS AMIGOS!

    Luciana Silva

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