sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Dos Mapas e Esculturas

pro Artur, Papito
Já se perdeu no passado o momento em que comecei a registrar meus dias por escrito. Lembro que, no princípio, realizava descrições factuais, como se tentasse arquivar as tarefas que fiz, as pessoas que vi, os lugares em que pisei. À medida que o tempo passou, os fatos, se é que posso chamá-los assim, gradativamente perderam importância. Tornou-se mais valoroso pôr sobre o papel sentimentos, impressões, pensamentos. As vivências interiores, sem que eu percebesse, assumiram o primeiro plano na compreensão que tento ter de mim.

Em todos esses anos, e lá se vão muitos, com raras exceções voltei aos antigos cadernos. Quando o fiz, buscava um poema esquecido ou outra ninharia qualquer, pois a curiosidade nunca foi forte o suficiente para me fazer repassar as centenas de páginas manuscritas guardadas no alto do armário. Sei que elas jamais me servirão para exaurir os detalhes das trilhas psíquicas que percorri, mas suspeito que podem me fornecer boas pistas daquilo que outrora senti e pensei, daquilo que fui e talvez não seja mais. Creio deter uma cartografia íntima.

O verdadeiro sentido da introspecção, porém, não é acumular conteúdos para biografia, assegurar dados para uma futura expedição. Ao inventariar as experiências, quero antes entender-me e fazer-me o melhor que posso. O esforço de auto-compreensão nada mais é que uma contínua composição do próprio eu. Escrevendo, busco talhar e elaborar a matéria de que sou constituído com o ímpeto de quem esculpe a si mesmo, obra sempre inacabada. A palavra é o cinzel com que trabalho a página em branco, mais dura que a rocha.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. (Ops, erros.) Sim, sim... pensando no que você tinha dito antes, e que talvez aquilo tenha sido um dos motivos para eu começar a escrever, hoje vejo o quanto me conheço, a cada dia lapidando um cantinho, nem que seja um pouquinho, mas um poquinho só. Colocando mais massa, às vezes eu até ouso cores e pensando, pensando, pensando. Calado; ando muito interno. Como você já me mostrou uma vez, não sei se você se lembra:
    "Montaigne,[...] escreveu em um de seus ensaios, o Do Desmentir, o seguinte: 'Os que se repassam apenas em pensamento e oralmente, de passagem, não se examinam tão essencialmente nem se penetram como quem faz disso seu estudo, sua obra e seu ofício, quem se propõe a um registro duradouro, com todo seu ânimo, com toda sua força.'"

    Obrigado por todas essas coisas, Centauro.
    Um grande abraço!,
    Artur

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  3. Ei Flavio, seus textos sao sempre lindos e profundos, tocam a alma.

    Beijos e saudade,
    Maira

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  4. Engraçado porque enquanto lia me veio a mente justamente Os Ensaios de Montaigne (assim como para o Artur Bicalho ai em cima). Acho importante se conhecer e se construir diante das impressões anotadas que se teve (ou que se terá) de si. Melhor ainda é poder extender esse conhecimento para compreender o outro e saber (se não construí-lo) orientá-lo.

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