domingo, 18 de julho de 2010

Infância

pra Marilice Corona,
pela inspiração da pintura

Penso que não é causar escândalo dizer que a infância não existe. Reconheço, claro, a distensão temporal que compreende os primeiros anos de nossas vidas, mas não é a ela que me refiro. Refiro-me à forma como, já adultos, normalmente voltamos os olhos para nossos anos de meninice, na forma como tendemos a pintá-los com cores fortes e imaginárias, transformando a infância em algo bem diferente daquilo que foi.

Uma criança não sabe o que é a infância. Ela não se pergunta sobre a fase que atravessa, não se preocupa em atribuir-lhe sentido. A criança apenas vive. É o adulto que a elabora e, marcado pelas experiências que o tempo lhe legou, constrói-a em contraste com a madureza e as dores inerentes à maioridade. Trata-se de um movimento análogo ao da religião: inventamos um paraíso do qual decaímos e que jamais existiu.

A infância é criação de adulto, cunhada quando se percebe que os desejos mais profundos não se concretizaram nem se concretizarão, que os sonhos foram frustrados, que o decorrer do tempo ceifou as esperanças. Consciente da rudez do real e premido pela nostalgia, o adulto refaz o passado a fim de justificar a própria existência, como quem quer provar que ao menos algo valeu a pena. Adultos que somos, lançamos sobre a infância os faróis da memória e da fantasia para transfigurá-la numa história fantástica, como se, alçando-a à categoria do idílico, pudéssemos redimir tudo que a vida nos tolheu, como se, com uma pequena luz, pudéssemos iluminar o breu.
PS: E quantas infâncias não temos...

4 comentários:

  1. Pq eu não consigo fazer o comentário? bem, queria dizer que ela vai gostar, e te perguntar se ela já sabe do post, se vc a avisou? bjs, L.

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  2. Ela já sabe!...e gostou muito!Muito sensível teu artigo...e, que bom que uma imagem tem o poder de comover e gerar novas imagens!
    A Infância é matéria bruta de muitos criadores. É uma tela de projeção no qual assistimos a exibição de um tempo onde as promessas pareciam estar plenamente lançadas...
    Dá uma olhadinha no artigo que escrevi a respeito na Revista eletrônica Panorama Crítico. O artigo chama-se Meus Documentos: a casa e o espaço da memória http://www.panoramacritico.com/003/
    Acho que vais gostar. Tem muito a ver com o que dizes. Bjs e obrigada por esse presente, M.C.

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  3. Marilice, querida! Adorei esta imagem da tela de projeção onde assistimos a um tempo no qual as promessas estão plenamente lançadas. É isso mesmo, a infância é - e pode ser, e deve ser - isso. Flavio, fico feliz que a pintura tenha te produzido imagens psiquicas novas. Esta série das menininhas é muito linda; é uma das lembranças mais legais que guardo das exposições que assisti nos anos 90 em POA. bjs pros dois, L.

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  4. "Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido, com que ternura eu não recordaria agora aquele velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família, e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal, e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, sob o zumbido inquietante dos besouros..."
    Mario Quintana

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