domingo, 13 de março de 2011

Francotônica I: E somos todos tibetanos

Nas andanças da vida, por um golpe de sorte acabei fazendo duas novas amizades. Estava numa conferência, sentado ao fundo de uma velha capela do século XVII, quando um chinês e uma senhora francesa sentaram-se ao meu lado. Por terem chegado um pouco atrasados, acabaram por me consultar acerca do que se passava e essa pequena consulta deu ensejo, na recepção que se seguiu à palestra, a uma conversa calorosa e gentil. Como resultado, fui convidado para um jantar na casa da Madame Villard algumas semanas depois, para o qual Qinghua e eu fomos juntos, já que tomaríamos o mesmo metrô.

A noite foi muito agradável e a conversa, como sempre nos jantares franceses, foi tão longa e variada como a refeição. Um casal de vizinhos da Mme Villard também estava presente e levou consigo seus dois filhos, um ainda adolescente. Marcou-me o quanto todos foram simpáticos e, mais do isso, a gratuidade da gentileza. Que bom que eu, num primeiro momento hesitante, finalmente aceitei o convite.

Daquela noite, porém, destaco um registro especial. É que em determinado momento a conversa passou a tratar da China, migrou para Macau e depois chegou ao Tibet. Qinghua nos contou, da perspectiva que lhe é própria, que os tibetanos aceitam a presença chinesa, pois é ela que assegura o desenvolvimento e “as pessoas querem ter coisas, querem o progresso”. A seus olhos, tudo se passa como se a resistência do Dalai Lama fosse uma exceção, já que o povo habituou-se ao domínio chinês (truculento que seja, acrescento eu) e está mais interessado no avanço material do que na liberdade.

Não emiti comentário algum quando estávamos à mesa, mas confesso que fiquei um tanto triste. Não me refiro à opressão política e ao dirigismo estatal, que me interessam menos do que a uniformização do sentido que damos às nossas vidas: também os tibetanos desejam o progresso, o conforto material... Considero que, mais que a tirania, mais que a violência ou a imposição do silêncio, o pior massacre que vemos na contemporaneidade (e que assola todos os povos) é o massacre do desejo, tolhido pela ilusão do consumo e planificado basicamente nos mesmos objetos. Acho impossível que sejamos felizes centrando-nos apenas nisso e, dada a perda de nossas identidades e diferenças, lamento que caminhemos para um nivelamento amorfo e global, lamento que caminhemos para nos tornar todos tibetanos, isto é, franceses, isto é, turcos, isto é, bolivianos, isto é, senegaleses, isto é, sauditas, isto é, filipinos, isto é, estadunidenses, isto é, zés-ninguéns.

Um comentário:

  1. Que bom que voltou Flávio! Que bom que voltou ao blog também. É muito pertinente a sua tristeza. Só não sei se é propriamente um massacre o que sofre o desejo, uma vez que a lógica do consumo propõe justamente uma proliferação indiscriminada de objetos de desejo. Talvez acabe mesmo por, pela via contrária, tolher sua liberdade de movimentos. Não sei. Mas é, de fato, triste. Baudrillard é um autor que percebe bem os mecanismos do consumo. É genial! Adoraria ter tempo para estuda-lo mais.
    Minha dissertação vai bem, mas com muito atraso. Em breve, mando alguma coisa pra que você veja.
    Um abraço.
    Thiago.

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