quarta-feira, 29 de abril de 2009

Orfandade

Recebo um telefonema inesperado. É meu pai, surpreendendo-me no final de um domingo de leitura dedicado ao Gênesis. Telefona-me para falar de nosso time, mas não sem antes me passar um susto: “você sabe o que aconteceu?” Era apenas a vitória na final do campeonato, embora com goleada histórica. Felizmente, nada de morte ou acidente. Ainda estamos todos vivos. Como moro bem distante, ele julgou preciso me avisar do grande acontecimento: 5 × 0 é um placar realmente especial, sobretudo num clássico. Contudo, acho que esse era apenas um pretexto. Instantes depois, está com voz embargada e me pede um favor: “se amanhã você lembrar” – pois não, pai, diga – “reze uma ave-maria pro papai, porque amanhã, se ele estivesse vivo, completaria cem anos, tadinho”.
Sempre notei em meu pai um amor profundo por meu avô, de quem as circunstâncias da vida me deram poucas memórias. Lembro-o velho, já um pouco debilitado, andando com muita dificuldade, fraquejante. Recordo também que meu pai obrigava-nos a ir à sua cama cumprimentá-lo (entenda-se: abraçar e dar um beijo) sempre que íamos à casa da vó Zezé. Era estanho e embaraçoso, meu irmão muitas vezes recusou-se a adentrar seu quarto, mas eu nunca deixei de obedecer. Imagino que tinha 12 anos quando a morte enfim o alcançou. Estive no velório, mas não fiquei para o enterro. Foi a primeira vez em que vi meu pai chorar, o que só se repetiria quando minha avó se foi.
Sensibilizado pelo pedido, penso em meu pai, na vida que construiu, em tudo que fez por mim. Imagino-me rezando pelos seus cem anos e anseio ardentemente que ele viva todo esse tempo, quem sabe ainda mais. Elevo os olhos e medito sobre nossa afeição, reflito sobre a grandeza inestimável de tudo que recebi. Observo o longe e mais do que nunca me apercebo do quanto a distância me dilacera. Torna-se aguda a consciência de que estou alijado do que me há de mais caro e chego a lamentar as decisões que me conduziram para outra cidade, outro estado, para os confins. Não fossem inevitáveis, voltaria atrás, se é que as teria algum dia tomado. A vida é injusta: que pecado cometi para ser apartado dos meus? Viceja em meu espírito um terrível medo da morte, temor que me leva a entoar uma oração silenciosa: “Ó Deus, não me deixe ser órfão”. Perder meu pai seria pulverizar-me, retornar ao pó antes do tempo, eu que não herdo a aliança com Yaveh e não busco entreter-me erigindo nações. No fundo, resigno-me com nossos prosaicos dias breves, desacredito a longevidade extraordinária dos patriarcas, mas nutro desejo muito mais miraculoso: viver o amor humano e próximo, a compartilha de uma vida serena, essa promessa inaudita e jamais realizada.

5 comentários:

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  2. CORTEI BAMBUS:
    para ti, meu filho.
    Eu vivi.

    A cabana trans-
    portada amanhã, ela
    existe.

    Não ajudei a contruí-la: tu
    não sabes em que tipo
    de urnas
    levei areia ao meu redor, há anos,
    sob ordem e ordenação. A tua
    vem do ar livre - e continua
    livre.

    A cana, que aqui toma pé, amanhã
    ainda existe, seja lá onde
    a alma irá levar-te no des-
    compromisso.

    Paul Celan

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  3. Marcelo Centauro,

    Na quarta-feira, fui ao velório de meu tio, o primogênito e o último dos homens da família materna a partir. O que me fez lembrar meu pai já morto, o mais velho dos irmãos, viu todos nascerem e todos morrerem. Vi minha tia, no seu pranto silencioso, aproximar-se vagarosamente e abraçar suas duas outras irmãs, todas viúvas, uma delas minha mãe. Chorei. Não temo o fim, não espero a descoberta da imortalidade nem tampouco a desejo, a aflição que sinto vem da necessidade de uma vida bem vivida, tendo em vista a certeza da sua brevidade.

    Amei meu pai e ainda o amo, mesmo ausente. Sempre que possível levo-lhe flores – somente para esses fins consinto em podas –, acendo-lhe velas. O ritual que se cumpre tem o valor de um encontro realizado através do silêncio abismal no qual mergulho, nesse silêncio ele agora habita. As flores e as velas são o código secreto que me permitem abrir a porta, transpor o umbral da sua nova morada, precipitar a queda no mundo dos não-vivos. O que muda ao retornar dessa trajetória? Quase nada, a morte continua sendo incompreensível, há apenas um apaziguamento progressivo: no início era dor, agora, saudade.

    E o tempo, aos poucos, torna, embora relutasse contra esta possibilidade, as lembranças, que dele tenho, sublimes demais. Seria isso o chamado perdão? Esforço-me para preservar-lhe a condição humana, resguardar o homem que foi, pois, de outro modo, não será mais meu pai (J.G.), então perderei metade das minhas origens, e a razão de amá-lo como tal.

    Escolhemos nossos caminhos e realizamos o milagre possível de cada dia diante das dificuldades, mantendo a esperança de que deixamos família e amigos em busca de algo melhor. E talvez, quem sabe, até mesmo aprendemos com tudo isso a amar de modo melhor, de modo humano, ou seja, na dor, na alegria, na saudade, nas frustrações e no desejo.

    Meu caro amigo, felicidades,

    Diana S. Castro

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  4. Não existe a imortalidade, somente o Ser Supremo nos faz acreditar que podemos ser melhor para fazer as pessoas felizes, tudo é temporario somente a morte é permanente.

    Carlos H Silva

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  5. Olha as etrelas elas sao simples e sao altas. Pe Antonio vieira.
    Assim tambem é nossa vida devemo ser simples.

    P. Rodigues

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