quinta-feira, 9 de abril de 2009

Outros Prazeres

pra Marília
Duas ou três semanas atrás, vivi um momento inusitado. A aula tratava do conto Amor, um dos que compõem os Laços de Família, como todos sabemos. Já tínhamos lido outras obras (Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, assim como um excelente artigo do Francis Wolff intitulado Nascimento da Razão, Origem da Crise) e havia enfim chegado o momento de ler Clarice Lispector e abordar a origem existencial da filosofia. Pois bem, começamos a analisar a rotina de Ana, focalizando seu esforço para abafar a vida que insistia em emergir, até que surgiu uma pergunta: a personagem, antes de ver o cego mascando chicletes e ainda submissa a seu universo de dona de casa, era feliz? Por alguns momentos, deixei a discussão navegar livremente e acabamos por aportar no tema do prazer. Felicidade é ter prazer? E o prazer, só há o sensível? A comida, a bebida, o sexo? Defendi a tese de que há outros prazeres e um aluno do fundo, daqueles que nunca se manifestam a não ser para tentar postergar trabalhos e provas, despertou de sua hibernação e causou riso geral: “Peraí, féssor, existem outros prazeres além desses? Prazeres não-sensíveis? Que isso?! Me dá um exemplo.” Naquele momento, dei duas respostas que acabaram por lhe satisfazer e me permitir retomar o fio da meada. Afinal, prosseguir na narrativa era preciso, convinha chegar à experiência do cego mascando chicles e pensar tudo o que a partir daí se descortinou para Ana. Caso contrário, não alcançaríamos o problema que mais me interessava (embora não fosse conceitualmente o mais relevante – idiossincrasia de um professor!) e que a narradora formulou numa interrogação: “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?”
Hoje, repensando aquele momento, acredito que teria um novo exemplo a acrescentar. O prazer de receber uma carta! Eis, realmente, um prazer incrível. Quem não o vivenciou, que trate de arrumar um amigo distante ou uma namorada estrangeira. Aviso desde já, contudo, que não vale e-mail nem SMS. Pode parecer saudosismo, mas não é: receber as folhas dobradas, as palavras escritas de punho e à tinta, reparar os selos e o carimbo dos correios, rasgar delicadamente o envelope – tudo isso é insubstituível. E nada disso é um prazer como os do ventre ou do palato.
Sim, realmente há uma esfera de satisfações irredutível ao que, por ausência de melhor expressão, chamaríamos corpo. No caso das cartas, acredito que se trata de um gozo, amálgama de prazer e dor. É muito bom ter as notícias tão aguardadas, receber carinho sob uma forma tão especial. Uma pessoa distante dedicou seu tempo para compor uma mensagem. Interrompeu todas as suas atividades para sentar-se à mesa e simplesmente escrever, isto é, depositar sobre o papel, grafando com letras e garranchos, o amor, a amizade e a saudade. Pois, numa correspondência, o ato freqüentemente importa mais que o conteúdo. Mas eis que aí também está o gérmen da dor, como dizia, pois a satisfação que experimentamos é proporcional ao desejo de proximidade. E se há desejo de proximidade, é porque há ausência, há falta, quiçá nostalgia. Não fosse a vontade de compartilhar a vida com intimidade, uma vontade que a distância muitas vezes torna dilacerante, as cartas não teriam graça e poderíamos passar sem elas. Que curioso, um prazer irmanado à dor! Se pensarmos bem, talvez todos sejam assim: o sedento necessita da água, ao orgasmo segue-se o abismo, não é a fome o melhor tempero? Mesmo Ana, personagem de Clarice, não desfrutou do espanto, apesar de todos os pesares?
No caso das cartas, padecemos dia após dia ao conferir a caixa dos correios. Expectativa frustrada diuturnamente até que... chegou! Só para alongar o prazer, gosto de aguardar para fazer a leitura. Coloco a carta sobre a mesa, reparo-a, resolvo fazer um lanche, finjo que a esqueci só para forjar a felicidade de reencontrá-la, sinto o coração bater, sonho acordado com o remetente, respiro fundo e com todo cuidado busco a lateral que permitirá cortar o envelope sem rasgar as folhas do interior. Não dura muito todo esse processo, já que minha alegria (devia dizer saudades, devia dizer dor?) me impele à leitura. Depois, terei de encontrar o momento oportuno para respondê-la, o que pode levar alguns dias e também não deixa de ser outra grande satisfação. Existem muitos prazeres: intensos, fugazes, pungentes. E ainda bem que existem as cartas.
PS: Mas será que um dia voltarei para o seio de minha família e amigos?

4 comentários:

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  2. Flávio, que alegria rever você!!!
    Compartilho dos seus pensamentos sobre receber cartas. Interessante que no conto da Clarice, um estranho que causa uma série de reflexões na mente da protagonista. Quando recebemos cartas, não é nenhum elemento exógeno que nos remete a uma viagem à constelações desconhecidas ou esquecidas da nossa psíque. É geralmente alguém que mora na nossa psíque, e mora de forma intensa, com sua representação bem delineada e clara. A carta guarda com a textura do papel, o cheiro da distância, algo que nosso princípio de realidade havia abafado: o amor, a saudade. Saudade narcísica, do nosso eu estampado de forma leve e doce naquele olhar. Também tenho um grande amigo, chamado Bira, que vez ou outra me escreve uma longa, saudadosa e nostalgica carta. Entro no registro lacaniano: gozo ou prazer? E no registro nietzschiano: faz diferença a resposta?
    Bjs e muita saudade!!!

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  3. Marcelo Centauro,

    Pensava em Marília, a quem foi dedicado o texto Outros Prazeres, quando me ocorreu a seguinte frase de Antoine Saint-Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. O contato com aquele texto, com o qual é impossível deixar de emocionar, suscitou a pergunta: quem seria Marília? Preferi tomá-la pela autora da carta, a pessoa que cativa, isto é, aquela que ganha a simpatia, a estima, encanta, apaixona, mas que também pode capturar, sujeitar alguém.

    Então, diante de um texto tão belo, ante a possibilidade da reprodução dos aspectos negativos do termo “cativar”, pensei na responsabilidade de Marília: ganhar a simpatia sem o uso da força, sem restringir a liberdade, ou seja, sem capturar ou subjugar o outro. Seria ela capaz dessa realização? A palavra é vento, mas aquela pronunciada “responsabilidade” tem o vigor dilacerante de uma arma dura que, a meu ver, destrói a negatividade vinculada ao termo “cativar”. E, o mesmo vigor possui Outros Prazeres, que de vento em vento, na mesma proporção, encanta, dilacera – sobretudo nas passagens que fazem referências às ações e ao estado de espírito do destinatário das cartas.

    Enquanto aquele que observa, não sei o que é mais difícil: ser ou não ser Marília. Não ser significa não vivenciar o encontro glorioso que se dá através das cartas, no entanto vivê-lo é a mais elevada expressão da dor e também da alegria.

    Felicidades,

    Diana

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  4. Aqui, faço só uma pergunta, depois de ter ficado tomada pelo silêncio imposto pela beleza do seu texto: o prazer não corporal, quando se torna intenso demais, não retorna, de algum modo, ao corpo? Eu, confesso, sinto tudo no corpo: a dor da saudade é um aperto no coração, a alegria de ter a carta nas mãos é um calor na boca do estômogo, a emoção durante a leitura é uma variação de calores e calafrios... enfim, acho que o corpo - ou a carne - tem muitas moradas...

    Saudade, Marília

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