segunda-feira, 1 de junho de 2009

Eterno Sísifo

pra Lu & Mari
Envelhecer é uma injustiça. Desde já aviso, contudo: não me refiro ao inevitável fato de que nos tornaremos velhos, subentendendo-se com isso frágeis e um tanto desmemoriados, nem me refiro ao risco da decrepitude. Sequer aludo à velhice concebida como rabugice, da qual muitos, aliás, não padecem. É envelhecimento a passagem da infância à adolescência e à madureza, conquanto sobre ela não recaia o peso da vetustez. E é ela, essa passagem, que tenho em mente quando afirmo a injustiça.
Pensemos nas crianças, quando ainda bem crianças, e em todas as pessoas que lhes sorriem, acariciam e, à distância, observam-nas com olhar cândido. Pensemos em todas as graças que lhes são ofertadas como que por recompensa à graciosidade que têm. Para elas, o mundo deve ser muito doce, pois, onde quer que estejam, basta ser o que são a fim de serem acolhidas com afeto. Uma mão espalmada sempre se estende. Tudo é afago, amparo, dádiva. Até que...
...cresçam. Basta começar a adquirir relativa independência, revelar e defender (às vezes de maneira estridente) as primeiras vontades, para que da mão venha a palmada, para que o riso se converta em careta, para que o presente se transmute em barganha. Não é nada doce suportar transformação tão radical. Para onde foi toda aquela amabilidade? Por que o mundo anteriormente receptivo se faz repressor? Por que o condescendente sim evolve para retumbante não? E olha que nem é necessário demonstrar desejos absurdos (há mesmo desejos absurdos?) ou opiniões heterodoxas (ortodoxia, o que realmente é?), caso nos quais se aprofunda ferozmente a negação. Não é curioso que o período em que mais somos acolhidos coincida com aquele no qual ainda não nos estabelecemos enquanto sujeitos? Por que a constituição de nossa personalidade caminha pari passu com a recusa alheia de nossa autonomia? É instigante pensar que as oposições se iniciam justamente quando deixamos de ser uma massa amorfa e passamos a delimitar nossa forma própria. Que sentido há no esforço de nos encaixarem em fôrmas pré-determinadas mesmo quando o molde que queremos nos dar é possível e legítimo, ainda que por ventura excêntrico?
Embora todos nós experimentemos um certo nível de recusa, que é inevitável e até salutar, há casos de nãos sistemáticos em que se veda à pessoa a possibilidade de manifestar seu próprio ser. O mundo, outrora afável, torna-se contumaz algoz, terrível ditador com porrete em punho. É assustador imaginar nosso ser reiteradamente negado, situação que apenas poucos conseguem redargüir com um sim antitético e voraz, como há de ser a consciência da própria condição, a pujança dos desejos autênticos. É como se, todos os dias, tivéssemos recusado nosso passaporte de entrada no teatro humano e fôssemos obrigados a solicitá-lo ininterruptamente. Por que algumas pessoas têm seu papel insistentemente cortado? Sua postura, seus anseios, movimentos e modos – sua fala? Recusar-lhes reconhecimento significa acachapar a tentativa de se afirmarem como indivíduos e obterem a tranqüilidade para serem o que são. Haverá crime mais desumano? É dilacerante a todo tempo ter de defender-se das pauladas do mundo e ainda angariar forças para perseverar. Tenho dificuldades em dimensionar a dor dos que se defrontam com tamanha peleja. Não são poucos que a enfrentam e sucumbem. Envelhecer é mesmo uma injustiça. Mas para alguns é uma injustiça ainda mais injusta.

6 comentários:

  1. Meu caro e doce Marcelo,

    Nada mudou, a mão continua espalmada e eu também ainda sou criança. Uma criança chata, mas ainda criança. Você sabe: a palavra di-lapidar, onde me encontrar.

    Beijos,

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  2. Flavio, meu querido,

    °Eu queria simplesmente voltar para lá, onde eu vivera minha infancia... no fundo, a partir do sentimento que aquilo que se realiza na vida, pouco diferente é do que a tentativa de alcancar a infancia metamorfoseadamente" (Theodor W. Adorno, "Kindheit in Amorbach", desculpe-me a traducao desajeitada).
    Acho que o adjetivo "metamorfoseadamente" é o que há de mais assencial nessa citacao e, permita-me, nesse "processo" como um todo... será que ele insiste em passar desapercebido a voce, meu caro?

    Com um abraco carinhoso,
    d.

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  3. Centauro, há uma teoria fisicalista na biologia, que possui desdobramentos na etologia e na antropologia, a defender que as espécies, mormente dos mamíferos, possuem um dispositivo por assim dizer "instintivo" que faz com que os adultos se sintam forçosamente afeiçoados aos filhotes. Funcionaria do seguinte modo: as feições infantis dos filhotes das mais diversas espécies seriam cuidadosamente fabricados pela natureza para causar nos adultos as sensações de carinho, afeição e a necessidade de protegê-los, por seu aspecto desamparado e frágil. Não sei enunciar a teoria, mas faço esse acréscimo com a intenção de inserir um ponto em favor do seu argumento. E faço um acréscimo pop (d. adorno que me perdoe): a letra da música Não vou me adaptar do Arnaldo Antunes, uma variação desse assunto, onde o observador da mudança é o próprio ex-infante, que se vê tragicamente crescido e desapropriado do seu mundo infantil...
    Forte abraço do Pires

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  5. Caro Macelo Centauro,

    Penso que tinha razão, a medida torna a alegria e a dor mais intensas. Tudo foi sem conta e, como pode ver, continua sendo. Sigo como antes, sem mentiras nem desculpas, mas agora no avesso dessa história. Deixo a síntese dos momentos para Ferreira Gullar, lendo o poema abaixo em primeira pessoa.

    Aprendizado

    Do mesmo modo que te abriste à alegria
    abre-te agora ao sofrimento
    que é fruto dela
    e seu avesso ardente.

    Do mesmo modo
    que da alegria foste
    ao fundo
    e te perdeste nela
    e te achaste
    nessa perda
    deixa que a dor se exerça agora
    sem mentiras
    nem desculpas
    e em tua carne vaporize
    toda ilusão

    que a vida só consome
    o que a alimenta.

    Ferreira Gullar

    Felicidades,

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