quarta-feira, 8 de julho de 2009

Desnorteando

pra Martinha, universal
pra Bárbara, batuque e garra
Há alguns anos, um amigo foi à França passar a lua-de-mel e, tendo voltado, não hesitou em contar-me: “Conheci Paris e voltei colonizado”. É engraçado, mas acho que não estava brincando. Creio que, mesmo sem perceber, sintetizou um sentimento comum a muitos de nós, pretensamente letrados e educados em boas escolas.

Acompanho vários amigos e conhecidos partirem para a Europa ou Estados Unidos a trabalho ou estudos. Sempre com orgulho e certas vezes soberba, vejo-os organizar a mudança e freqüentemente acalentar a expectativa de fincar pé nas bandas de lá. Tudo corre como se tivessem encontrado a chance de habitar o centro do mundo – “onde tudo acontece” – e pudessem enfim tomar parte no que há de mais contemporâneo em todo o planeta. Nas festas de despedida não é incomum entrever um misto de admiração e inveja por parte dos que permanecem. Parece-me que vários dos que ficam nutrem o mesmo desejo de “conhecer o mundo”, ainda que muitas vezes esse ‘conhecer’ signifique pouco mais que deslumbrar-se e o ‘mundo’ mal se estenda além do Mediterrâneo e dos Urais.

Reconheço as possibilidades que alguns dos países do norte oferecem. Reconheço também a ambivalência dessas possibilidades, sempre crivadas pela pecha de estrangeiro, quando não pelo opróbrio xenófobo. Só não entendo o frisson causado por Roma, Nova York, Berlim e companhia limitada. Desconfio que, tal como nos centramos no sudeste do Brasil e na zona sul de duas de suas capitais, centramo-nos também no velho continente e na América (América?) como se fosse um referencial irredutível, para não dizer redentor. Crianças, é como se fosse preciso nos submeter a um rito mágico, estranho e estrangeiro, para adentrarmos a idade adulta. Queremos ser modernos, pós-modernos, bem-sucedidos, antenados (sabe-se lá mais o quê) e agimos como se apenas no exterior pudéssemos atingir tal status. Olhamos nossa terra como arcaica ou rudimentar, donde o desejo de deixá-la, nem que seja temporariamente. Mendigamos bênçãos alheias ao invés de, aqui e agora, fazer acontecer.

É fato: ainda estamos colonizados e nos comportamos como se viver em nossa pátria fosse viver em degredo. Pode parecer estranho, mas é preciso descobrir o Brasil.

10 comentários:

  1. Perfeito, homem-cavalo!
    Por sinal - mais especificamente - desbravemos o sertão! Finquemos pé, criemos raízes e produzamos frutos (sem nem precisar de irrigação) no sertão! Reinventemos antropofagicamente o sertão! A propósito, como diria um amigo seu, o sertão é o mundo!

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  2. flavio, meu caro,

    sua análise me parece simultaneamente precisa e falsa. por um lado, me parece certo que os países pobres ainda nao participam inteiramente (ou, em certos casos, sequer parcialmente) das conquistas que a modernidade mais desenvolvida trouxe aos países do norte, conquistas essas que nao deixam, sob nenhuma hipótese, de significar progresso e desenvolvimento humano, o que faz com que ainda estejamos encerrados sob vários aspectos em uma certa "medievalidade" detestável. justamente por isso, entretanto, a massa dos indíviduos no brasil, por exemplo, ainda carrega aquela ingenuidade "pré-moderna", periférica e interiorana que nao raro faz com que eles parecam mais reais do que os sujeitos às vezes plásticos e fragmentados lá de cima, e aqui ainda possamos falar de "calor" enquanto lá parece imperar a frieza.
    entretanto, os sujeitos que, acredito, tem a oportunidade de experimentar um período de estudos ou trabalho no estrangeiro, sao aqueles "ricos" segundo o padrao dos países pobres e, como tais, já formados e educados subjetivamente segundo a modernidade que, de resto, é irrefreável. nao espanta, pois, e nao me parece condenável, que palpite neles o desejo de experimentar o centro do mundo; "centro do mundo" é uma expressao sem qualquer traco de exagero ou colonialismo, por sua vez, dado que o sistema que imperiosamente avanca aqui em baixo é o mesmo que lá de cima (leia-se, o capitalismo), porém, no nosso caso, transfigurado, difuso e ainda incipiente.
    o frisson causado por nova iorque, berlim ou madagascar é tao estúpido quanto qualquer patriotismo ou regionalismo, e tao opressor quanto qualquer totalitarismo (devemos europeízar o mundo ou sertanizar a europa? a violencia presente nos dois casos me parece no mínimo análoga).
    nesse sentido, conhecer a metropóle me parece essencial para a colonia, se essa quer conhecer a si mesma minimamente. ademais, "voltar colonizado", como voce bem o disse, jamais é uma excecao: somos todos em certo sentido "colonizados" (se é que faz sentido dizer de uma "cultura oficial metropolitana" hoje em dia), e que o saibamos é antes um ganho do que uma falha.
    "descobrir o brasil"? me parece antes necessário (re)inventá-lo, pois fincar o pé em quaisquer elementos supostamente pura, genuína e originariamente "brasileiros" seria, no melhor dos casos, ideologia.

    com um forte abraco,
    d.

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  3. ps: ah, embora nao goste muito dele, sou obrigado a admitir que o caetano resumiu muito bem toda essa discussao no seguinte verso: "aqui tudo parece que é ainda construcao e já é ruína".

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  4. Flavio! Bão, moço querido?

    Sempre leio as coisas daqui, bonitas de costume...

    Achei curioso esse post, talvez porque eu não me identifique tanto com esse sentimento de que tudo acontece lá no estrangeiro, ou porque minha experiência tenha se passado por outro ponto de vista que não trabalho e estudos.

    Confesso ser até uma pequena frustração: o mundo maravilhoso de lá me pareceu bastante normal. Lugares belíssimos, mas normais. Cultura normal - diante dos séculos à frente que tiveram, surpreendente seria o contrário... Nenhuma grande surpresa, pessoas normais. Mas aí sim foi o que mais me atraiu, pessoas que tem as mesmas necessidades de carinho, sorriso, atenção; então as descobertas, as diferenças óbvias de cultura e história mas, mais do que isso, o interesse recíproco de descobrir as diferenças. Com espaço para afinidades: a semelhança entre um mercado em Trappes (quartier sensible) e qualquer mercado popular no Rio.. bom aprendizado.

    Um poema do Drummond me acompanha desde antes de me aventurar longe, chama-se "Mundo grande". Adoro a descoberta dele! Diz, dos amigos que "foram às ilhas":

    "...e trouxeram a notícia
    de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
    entre o fogo e o amor.
    Então, meu coração também pode crescer."

    Pois é! Continua crescendo... =)

    Um beijo, com saudades!
    Alline

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  5. Olá mestre,

    sempre passo por aqui sem deixar nenhum comentário. Mas este texto de hoje é me faz refletir um pouco, sobre tudo com as comentários do Daniel.

    Bom, não vicejo ir à Europa ou algum desses países aí do norte! e mesmo se fosse o contrário não teria condições pra isso! Meu norte é o de Minas, precisamente um pouco mais a nordeste. e se quisessemos um pouco mais, Vale do Jequitinhonha!

    Não creio que é possível regionalizar a Europa, mas é preciso regionalizar o "Brazil". e para tirar esse "Z" daí é preciso desmitificar a centralidade do norte do mundo. é preciso propor modelos e políticas que façam emanar a vida, o Humano regionalista.

    se é ideologia falar de alguma coisa "genuinamente brasileira" é demagogia, ou melhor reificação não atinar o intelecto para a brasileiridade. Colonizada ou não é a partir dela que é preciso investir para minizar os impactos - espero que isso não tenha ficado pafletero. e talvez depois de (re) inventar o Bbrasil, não só os típicos "ricos" do país possam conhecer o velho mundo, mas eles possam conhecer o multiverso brasileiro e os típicos "pobres", estereótipos engrendrados pelo IDH, tbm possam conhecer o universo do Norte.

    abraços.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Caro Marcelo,

    Um breve comentário-poema:

    des(norte)ando

    De uma gota d’água ao mar,
    Penso que o mundo vai.
    Em cada canto, confins de mundo há.
    O que importa?
    – Se para o micro ou macrocosmo,
    Que se conhece
    Ou deseja conhecer,
    Escolhe-se
    Viver ou fenecer.

    Felicidades,

    Diana S. Castro

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  8. Caro Centauro,

    Entendo o questionamento que se faz aos que superestimam a cultura europeia ou americana, como se apenas lá a vida fosse intensa e as coisas acontecessem, mas desconfio da defesa apaixonada que alguns fazem do "ficar em nosso país". Ela me parece exatamente o outro extremo de uma visão parcial da questão. Como disse o seu amigo Daniel, o patriotismo é igualmente patético.
    Essa vontade de sair, que acomete quase sempre os que, por estudo e conhecimento já conhecem um pouco do mundo fora de nossas fronteiras, é muito natural, creio eu, e vale a pena, nem que seja para admirar a unidade na diversidade humana, como algém disse aí em cima. Sem nunca ter ido para o Velho Mundo, mas tendo vários amigos de lá, que aqui moraram e moram, sei o quanto somos iguais em nossos temores, esperanças, conflitos e alegrias. Penso que não se trata mais de ser colonizado ou não. È preciso acabar com o complexo do colonizado, no Brasil. O mundo todo coloniza-se, interage e muda. Cidades como Londres e Paris discutem o que seria a identidade nacional na contemporaneidade, dado o enorme contingente de estrangeiros e filhos de estrangeiros por lá nascidos e que lá vivem. Ou seja, os estrangeiros estão também fazendo e acontecendo em suas novas moradas.
    Mudar de lugar, para mim, além de mudar de ares, de paisagem, de comida, de cheiros, é muito um mudar de problemas. Deixamos para trás os que já nos são insuportáveis e encaramos outros, mais toleráveis. Quem, como eu, não suporta mais alguns problemas tipicamente tupiniquins, como a ignorância da classe dirigente, a burrice do sistema educacional e a falta de eficiência no trabalho, pode perfeitamente trocar o Brasil pela Europa ou os EUA, sabendo que vai, fatalmente, lidar com problemas que são os de lá, mas que em determinada situação lhe são mais aceitáveis.
    Não tenho medo de me modificar ao entrar em contato com outras culturas. É preciso reconhecer que séculos a mais de civilização e urbanização e várias gerações a mais de pessoas vivendo em uma terra, dão a qualquer povo características distintas; relações sociais se aprimoram, avançam; modos de fazer as coisas se aperfeiçoam; idéias são lapidadas, não crê?
    Nós somos muito jovens enquanto Nação, e nossa infância foi traumática, obrigados que fomos a copiar os moodelos europeus e sufocar nossas verdadeira natureza e nossos significados mais autênticos, é justo que nos revoltemos contra isso mas não devemos nos cegar com o brilho de nosso orgulho tropical.
    Afinal, quanto maior a sabedoria, maior a humildade do sábio, não é?
    Um abraço, meu querido amigo,

    Raquel Rios

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  9. Querido,

    Só hoje tive chance de ler esse texto, que me pegou em cheio... Há poucos dias encontrei um amigo alemão que visitava essas bandas do sertão (é casado com uma moça "nativa" - rsrsrsrs - e moram em Berlim). Ele me dizia o quanto se impressionava a cada vez que voltava ao Brasil e se deparava com a morosidade de tudo, inclusive da pessoa que passa as compras no caixa do supermercado. Contou-me ainda que precisaram resolver algo relacionado à venda de uma casa, tendo que recorrer a informações na prefeitura, sendo mal atendidos e recebendo informações erradas. Lembro que aquilo me fez refletir bastante... Não há como negar que precisamos avançar bastante no que se refere às políticas públicas e regras de convivência/respeito ao outro. Pensei, ao conversar com ele, que frequentemente me sinto desrespeitada como cidadã por cá... Mas são peculiaridades, certamente fundamentadas em todo um processo histórico que não desejo discutir aqui... Claro que temos muito a avançar!... Entretanto, não quero mesmo enveredar por aí... Hoje nem estou a fim de papo "sério"... Na verdade, queria só marcar que teu texto me fez pensar na delícia que é essa mestiçagem brasileira e as riquezas que produziu/produz... Cada canto daqui tem seu sabor, assim como cada canto do mundo lá fora do Brasil... Acho que na vida valem as experiências e é muito gostoso sentir que o mundo é mais, que a vida é mais... Gosto desse sabor, por isso valorizo muito as possibilidades de transitar... O sentido desse trânsito, cabe a cada um construir... Eu gostaria de várias vidas para experimentar várias coisas, vários lugares, vários países e culturas... Uma vida só às vezes me parece tão pouco! Mas como é o que se tem garantido, melhor aproveitar. E penso que o melhor modo de aproveitar é curtir o que se tem, onde se está, explorar, sorver, inventar possibilidades... ao mesmo tempo preservando essa vontade de ir além que costuma nos mover... Assim, cada um vai construindo sua história! Que seja aqui ou acolá, um pouco aqui ou lá fora, seja lá onde esse fora for, vale mais a pena mergulhar no que parece fazer sentido a cada instante da trajetória!... Gostei bem do texto!! Um bj, gatão!! B.

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  10. Estou começando a gostar da ideia de blog e vc. é um dos meus inspiradores e sobre essas viagens prefiro morar mesmo na linguagem do meu país. Disse Adorno " Para quem não tem mais p~´atria talvez escrever seja a únic a morada"
    abraço de Ouro Preto voltando para o Rio
    Ira

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