sábado, 3 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada III

Die Schlange geht weiter. A fila anda, até em alemão. Quem não sabe disso? A cada final de semana, às vezes a cada noite, às vezes numa mesma noite, as pessoas têm ao lado alguém diferente. São os encontros e desencontros que os DJ’s promovem ao fazer as peças se movimentarem nessas caixas que chamamos boates. Tudo muito corriqueiro, coisa que não causa espanto, mas que dá ensejo a religiosos radicais para dizer que a balada é uma instituição demoníaca. Quem nunca ouviu as caretíssimas referências a Sodoma e Gomorra?

Considero-as caretíssimas porque, em primeiro lugar, são ditas de fora, por alguém que nunca experimentou aquilo que critica e, em segundo, porque erram o alvo completamente. Não sei se liberdade sexual e promiscuidade são a mesma coisa, mas é certo que os religiosos continuam a tomar a castidade como valor, o sexo como tabu, e não conseguem conceber que o beijo e transa tenham se tornado diversão: na noite, o prazer está livre do peso do pecado.

Não faço apologia dos excessos em que, vez ou outra, todos nós incorremos, mas julgo impossível compreender a balada sem reconhecer o fenômeno da substituibilidade, da fila que anda. Trata-se, como se diz, de um fato, fruto do gosto pela novidade e da urgência na satisfação do desejo. O que mais poderia resultar de tal amálgama senão o contínuo rearranjo dos pares que se formam na noite?

A interrogação que me coloco, e que me parece importante, é se o hábito do não-envolvimento poderá um dia ser quebrado (porque o prazer, ora, ele não é um mal!). Será que alguém, depois de anos desfrutando do descompromisso, conseguirá envolver-se com outra pessoa? É que, quando saímos pra balada, não importa muito com quem vamos ficar, importa mais o alívio da vontade que nos move. É por isso que, por um lado, é tão fácil encontrar alguém e, por outro, tão fácil descartar. No fundo, não nos voltamos a uma pessoa em particular (como ocorre no amor), mas a uma pessoa qualquer, desde que atenda aos requisitos mínimos, normalmente físicos, para nos satisfazer. Fazemos do outro um objeto, como já sabemos, e pouco nos importamos com o que sentirá no dia seguinte.

Acontece que essa desconsideração ocorre nos dois sentidos: tal como nós, a pessoa que encontramos na balada queria satisfazer suas próprias vontades, também estava centrada apenas em si mesma, fazendo do outro um instrumento para seu próprio prazer. E o que poderá resultar daí?, pergunto-me. Considerando o descaso e eventual malícia das interações da noite, que crosta não haverá se formado em nós para nos proteger do inevitável vazio, da falta de cuidado e diálogo, da ausência de um afeto que sobreviva ao tesão? Será que o amor, caso um dia surja, conseguirá romper essa crosta? Depois de anos na toada hedonista-individualista, seremos um dia capazes de nos libertar da escravidão de nossos próprios desejos? Seremos um dia capazes de amar, de tratar o outro como sujeito? Ou será que a fila vai andar eternamente?

2 comentários:

  1. Flávio, meu caro...

    Achei sua filosofia da balada um tanto unilateral, pessimista... É desencontro, é desafeto, e, claro a superficialidade da pele, da roupa, do beijo... Mas também é encontro de iguais, estrangeiros passantes do dia, de uma sociedade hipócrita, mesquinha, julgadora.. A coisa dos gatos serem pardos é um clichê deliciosamente verdadeiro.

    A caixa balança sim, com essas peças desencontradas, mas que acabam tendo sim um mesmo encaixe, são arrumações possíveis, baseadas em estéticas que são também objetivações de subjetividades... A escolha aparentemente superficial da roupa, da balada, do corte de cabelo, da make, acessórios, esconde (e revela) tanta coisa que (quase) inconscientemente é que fazemos as escolhas da peça possível, que jogamos esse dado, pra tirar na sorte a pessoa X que vai " mudar tudo"..

    É um jogo de sorte, mas que acaba sendo o jogo com uma das melhores margens de acerto, mesmo que eventualmente restem apenas arranhões e hematomas... Que também não podem ser deixados esquecidos ou subjetivados.

    Acho sim que, hora ou outra, e pode ser na balada ou através belíssimo serendipity na padaria ou supermercado, esses encontros acabam acontecendo... O "estar disposto", disponível, "olhar e ver" e se deixar ver, mostrar, também são importantes, essenciais..

    Não estou defendendo a balada ou falando que ela não é tudo isso que você já disse. Concordo em muita coisa. Mas ela também é chance e, indiscutivelmente, é uma ótima oportunidade pra estar com os amigos e se divertir, talvez até cantar alguns refrães despretensiosamente em lugares também despretensiosos..

    E que surpresas podem ser reservadas?! rs



    Parabéns pelos textos... Quero os outros já! rs
    Grande abraço!

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  2. Puxa vida, que bela construção! Descreveu bem o modo como o jogo de interesses(advindos de dejesos a serem saciados) formam as relações humanas. Já não se harmonizam espiritualmente, se rivalizam em desejos...Parece ser a relação dialética da natureza humana.

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