sábado, 17 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada IV


Acho muito engraçadas as descrições de festas. Todas miseravelmente parecidas: os mesmos apelos, as mesmas palavras, o mesmo espírito e a mesmíssima tentativa de ser interessante, leve, divertido, único. Será que alguém leva aquilo a sério? Não sei, não tenho como saber, mas essa é uma resposta irrelevante, porque duvido que quem freqüenta a balada realmente espere algo novo: é sempre mais do mesmo, estando a variação resumida ao acaso dos encontros e desencontros.

A questão que se coloca, aos menos para os desavisados como eu, é a seguinte: como ser diferente? Como demonstrar uma singularidade a fim de fazer-se notar por alguém que também não se enquadra na massa amorfa? Não me refiro à alternativa de destacar-se com uma roupa de marca, tatuagem à mostra, óculos com armação chamativa – soluções tão comuns (de novo, tão iguais) nesses ambientes em que se suprime o diálogo em prol da supremacia do olhar.

Essas são soluções bastante coerentes, devo reconhecer, pois a comunicação reinante na noite é a visual. A arquitetura da balada – ruído acachapante, estímulo rítmico e jogo de luzes – obriga que as interações se estabeleçam a partir do corpo e do movimento (da aparência, enfim), donde o sentido de sobressair-se por meio de algo que possa ser visto. Adotar essa estratégia, porém, significa mergulhar no modus operandi da noite e não, a rigor, diferenciar-se.

Ao que me parece, é impossível distinguir-se na noite de uma maneira que não seja, como tudo o mais, previsível. Se o contato entre duas pessoas há de ser intermediado exclusivamente pela aparência, não há escapatória da visualidade. A única saída para de fato distinguir-se ou encontrar alguém diferente seria reabilitar o diálogo, justamente o que a noite não permite. Em outras palavras: a única saída seria sair da própria noite ou, ao ser abordado por alguém ou chegar numa pessoa interessante, comportar-se de modo absolutamente inusual para os padrões da balada: conversar longamente, talvez citando, para dar início ao papo, a frase que um grego antigo dizia às suas pretendentes: fale para que eu possa te ver.

sábado, 3 de março de 2012

Por uma Filosofia da Balada III

Die Schlange geht weiter. A fila anda, até em alemão. Quem não sabe disso? A cada final de semana, às vezes a cada noite, às vezes numa mesma noite, as pessoas têm ao lado alguém diferente. São os encontros e desencontros que os DJ’s promovem ao fazer as peças se movimentarem nessas caixas que chamamos boates. Tudo muito corriqueiro, coisa que não causa espanto, mas que dá ensejo a religiosos radicais para dizer que a balada é uma instituição demoníaca. Quem nunca ouviu as caretíssimas referências a Sodoma e Gomorra?

Considero-as caretíssimas porque, em primeiro lugar, são ditas de fora, por alguém que nunca experimentou aquilo que critica e, em segundo, porque erram o alvo completamente. Não sei se liberdade sexual e promiscuidade são a mesma coisa, mas é certo que os religiosos continuam a tomar a castidade como valor, o sexo como tabu, e não conseguem conceber que o beijo e transa tenham se tornado diversão: na noite, o prazer está livre do peso do pecado.

Não faço apologia dos excessos em que, vez ou outra, todos nós incorremos, mas julgo impossível compreender a balada sem reconhecer o fenômeno da substituibilidade, da fila que anda. Trata-se, como se diz, de um fato, fruto do gosto pela novidade e da urgência na satisfação do desejo. O que mais poderia resultar de tal amálgama senão o contínuo rearranjo dos pares que se formam na noite?

A interrogação que me coloco, e que me parece importante, é se o hábito do não-envolvimento poderá um dia ser quebrado (porque o prazer, ora, ele não é um mal!). Será que alguém, depois de anos desfrutando do descompromisso, conseguirá envolver-se com outra pessoa? É que, quando saímos pra balada, não importa muito com quem vamos ficar, importa mais o alívio da vontade que nos move. É por isso que, por um lado, é tão fácil encontrar alguém e, por outro, tão fácil descartar. No fundo, não nos voltamos a uma pessoa em particular (como ocorre no amor), mas a uma pessoa qualquer, desde que atenda aos requisitos mínimos, normalmente físicos, para nos satisfazer. Fazemos do outro um objeto, como já sabemos, e pouco nos importamos com o que sentirá no dia seguinte.

Acontece que essa desconsideração ocorre nos dois sentidos: tal como nós, a pessoa que encontramos na balada queria satisfazer suas próprias vontades, também estava centrada apenas em si mesma, fazendo do outro um instrumento para seu próprio prazer. E o que poderá resultar daí?, pergunto-me. Considerando o descaso e eventual malícia das interações da noite, que crosta não haverá se formado em nós para nos proteger do inevitável vazio, da falta de cuidado e diálogo, da ausência de um afeto que sobreviva ao tesão? Será que o amor, caso um dia surja, conseguirá romper essa crosta? Depois de anos na toada hedonista-individualista, seremos um dia capazes de nos libertar da escravidão de nossos próprios desejos? Seremos um dia capazes de amar, de tratar o outro como sujeito? Ou será que a fila vai andar eternamente?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A carta possível

pra Passiflora

Sei da estrada de terra,
do casório na capela,
e da ceia da tarde
como um domingo na avó.

Sei das mesas dispersas,
da quadra coberta,
de dois vira-latas,
da pinga e dos maruins.

Sei das modas de viola,
dos doces da roça,
da minha falta de jeito
de olhar teu vestido azul.

Sei da festa na praia,
na outra cidade,
continuando a festa
que não quer saber de ter fim.

Sei do meu corpo cansado,
das estrelas na grama,
do meu copo de vidro,
da grappa e do trago.

Sei do som de improviso,
da dança e alguns passos,
dos meus olhos altivos,
da tua mão na minha barba.

Do teu toque eu meu rosto,
eu sei, sei hoje como soube ontem,
como soube sempre
desde aquele dia, daquela noite,
daquele céu escuro de dezembro,
início de verão
e do meu não-saber.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Por uma Filosofia da Balada II

Começo com uma confissão: sempre que vou pra balada, levo comigo um protetor auricular. O som nas boates é excessivamente alto e me fere. Além disso, sem o protetor, acordo no dia seguinte com um sino de igreja dentro da cabeça. Uma grande amiga, rindo de mim, certa vez me perguntou: “mas como você faz para conversar com as pessoas?” “Quem disse que as pessoas querem conversar?”, retruquei.

A noite é concebida de modo a inviabilizar o diálogo e quem tenta alongar muito um assunto certamente se torna um chato. A arquitetura da balada parece pensada para conformar um tipo de desejo que prescinde da fala ou a reduz ao mínimo (apenas o suficiente para a aproximação). Na noite, a atração não depende do discurso e do conhecimento do outro. A noite é o reino do olhar e, portanto, da aparência.

O ruído acachapante, o estímulo rítmico e o jogo de luzes fazem com que o interesse pelo outro se construa a partir de um não-saber. Quando duas pessoas ficam, não é porque se conheçam: elas se interessam não pelo que o outro é, mas pelo que o outro aparenta. No lusco-fusco e furor da dança, acentuados pela ausência de diálogo, abafado pelo som ambiente, tem-se do outro apenas uma imagem e é ela que move o interesse. Mas isso não é problema: quem entra numa boate sabe que outras formas de desejo ou excitação mal têm lugar ali. Num certo sentido, prevalece o desejo pelo desconhecido e superficial, pelo sinuoso e urgente.

O que se passa na noite é nada mais do que uma recusa da subjetividade. Na balada, ninguém se expõe, só se exibe. Sem o intermédio da palavra, nós nunca nos mostramos verdadeira e integralmente, pois a casca que se apresenta é uma parte ínfima e a menos importante de nós, ao menos quando se trata do amor ou da busca de um vínculo significativo entre duas pessoas. Sendo assim, flertando a partir da lógica da visualidade, nós próprios nos reduzimos aos rostos que possuímos, ao modo como dançamos, à roupa que vestimos, e não devemos nos surpreender se formos tratados como objetos e, no dia seguinte, bater em nós um tremendo vazio.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Por uma Filosofia da Balada I


We found love in a hopeless place. Eis o refrão de uma música bastante tocada na noite. É de uma canção que conheci muito recentemente e à qual nunca havia dado grande atenção até reparar sua letra. Confesso que a escuto com um sorriso nos lábios, pois acho uma grande ironia a massa informe das boates repetir aos gritos uma afirmação tão inverossímil.

Who has ever found love in a hopeless place?, pergunto a mim mesmo, sem vislumbrar qualquer resposta. Concebo a noite como a expressão máxima do “Quadrilha” do Drummond: João amava Tereza, que amava Raimundo, que amava Maria... E digo expressão máxima porque não há lugar onde se dê maiores desencontros do que na noite.

Durante certo tempo (e às vezes até hoje), saí (e saio) pras baladas nutrindo certa esperança de encontrar alguém com quem possa estabelecer um vínculo que ultrapasse o ficar. Mas a verdade é que a gente logo se desencanta ao se dar conta, depois de desencontros mais ou menos dolorosos, que está a buscar uma agulha no palheiro. A impressão que se tem é que ninguém quer nada sério, como normalmente se diz. Às vezes, chega a assolar-nos um desânimo profundo, que nos afasta da noite, desânimo proveniente do desejo ferido pela busca do quase-impossível. Who, who, who has ever found love in a hopeless place?

E não é pra menos, a gente há de convir. ‘Boate’ vem do francês boîte, caixa, e realmente parece não passar disto: uma caixa cheia de peças que, sacolejadas por um DJ, são levadas a ter encontros aleatórios umas com as outras. Fosse outro o sacolejo, outros seriam os encontros, ou melhor, desencontros. Como se percebe acompanhando as baladas, tudo (as músicas, os passos, as bebidas, as roupas, os lugares) se repete desesperadamente, exceto o arranjo – sempre variável – das peças, que em nada é afetado quando uma delas decide sair, quem sabe por desilusão, quem sabe por pensar no J. Pinto Fernandes, se é que ele ainda quer entrar na história.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Charme

Acho a naturalidade uma virtude. Não creio que possamos ser felizes e dignos de admiração a menos que sejamos espontâneos, demonstrando o que somos sem a afetação que adoece os partidários do estilo, desse tal de estilo. De uns tempos pra cá, sou incapaz de precisar quando, é comum ouvirmos pessoas falando em style e valorizando, na apreciação que fazem dos outros, os traços ou trejeitos que denotariam a autenticidade de fulano ou beltrano.

Salta aos olhos, porém, o quanto todo esse discurso é uma grande furada, já que vivemos uma época em que todos nós estamos cada vez mais parecidos. Não seria o ímpeto pela customização (que palavra é essa, meu Deus?) um sintoma de nossa homogeneidade? De onde mais poderia provir o ardor por nos diferenciarmos a qualquer custo? O curioso é que, como vemos todos os dias, os buracos nas calças, as tatuagens feitas sobre as mesmas partes do corpo, os cabelos com a inevitável chapinha, o vocabulário repetitivo – tudo isso nos faz farinha do mesmíssimo saco.

Por trás da valorização do estilo e da boa dose de higienismo que o acompanha, desconfio que há um desejo oculto pela perfeição, notadamente do ponto de vista estético. O estilo é sempre um artifício, uma tentativa de melhorar o que somos, negando, contudo, o que realmente somos. Ter estilo significa apagar características que nos incomodam (ou delas desviar o olhar) e nos aproximar de um ideal cool que ninguém sabe o que é. Peço que me perdoem, mas estilo me soa uma camuflagem requintada.

Nesse sentido, parece-me que ter estilo é o exato oposto de ter charme, coisa que anda fora de moda e de que mal se escuta falar. Penso o charme como uma apropriação particular das “imperfeições”, como a incorporação de nossos “defeitos” a nosso próprio ser, sem julgar que isso represente qualquer demérito. O charme, no fundo, é uma paz consigo mesmo, a aceitação da beleza de nossos pequenos desarranjos, em especial os físicos: uma pinta no meio da bochecha, algumas rugas apressadas, um leve estrabismo, cabelos brancos, covas um pouco profundas, quilinhos a mais e assim por diante, numa lista que poderia ir ao infinito, como os passos estranhos de quem foge a uma coreografia e se torna, exatamente por isso, divertido e apaixonante.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Coisas em ordem

Voltando à praça da estação para levar uns amigos ao Museu de Artes e Ofícios, lembrei-me de um conhecido que vi por lá há alguns anos e com quem, desde então, talvez não tenha mais me encontrado. Achava-o um pouco insistente, sempre me demandando muito, e recordo-me que, naquela ocasião, dei a resposta que sempre lhe dava ao me perguntar como eu estava: “estou colocando as coisas em ordem”. “Mas você está sempre colocando as coisas em ordem!”, ele me retrucou.

Devo admitir que empregava essa fórmula muitas vezes, normalmente com o intuito de esquivar-me de entrar em detalhes sobre minha vida frente a pessoas que, ao menos aos meus olhos, queriam avançar uma fronteira que eu desejava manter fechada. Penso que acontece com todos: algumas pessoas querem se tornar próximas de nós e nós, sem saber o porquê, não sentimos vontade de nos abrir.

Devo admitir ainda que, ao ser confrontado com o “mas você está sempre colocando as coisas em ordem!”, acabei percebendo algo que me passava despercebido. Essa fórmula, embora corriqueira, revelava uma verdade sobre mim: eu sempre me sentia ultrapassado pela vida, uma pessoa que não dava conta de elaborar tudo o que os dias oferecem e precisava se recolher para assimilar sentimentos e pensamentos.

Acontece que as coisas, ainda que tentemos, nunca ficam totalmente em ordem. Mais do que querer encontrar a ordenação perfeita da nossa vida, o melhor a fazer é aprender a conviver com uma certa desordenação. Colocar as coisas em ordem, agora vejo, representava um impulso para dar às minhas vivências um caráter coerente, englobá-las numa totalidade que conferiria significado à vida ou, ao menos, à minha vida.

Entretanto, hoje desconfio que dotar a vida de um sentido implica reduzi-la à nossa compreensão, implica podá-la de uma série de possibilidades que não se enquadram nos limites de nosso entendimento. Não falo aqui de preconceitos, pudores ou do politicamente correto e nem me interessa falar da recusa do impulso moderado de colocar as coisas em ordem, o que nada mais é senão a loucura e a perda da tão necessária e frágil lucidez. Falo do esforço descomunal de aceitar a vida em sua plenitude e consentir a suas contradições. Se não me iludo muito, hoje o essencial me parece ser a tarefa terrivelmente humana de abarcar o imponderável no peito e dizer, a cada manhã, bom dia.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Citação VII: Luís da Câmara Cascudo

O Sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levam facilmente as charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxes de Donalson e de Youmans. As meninas, que conheci espiando os “home” por detrás das frixas das portas, reclusas nas camarinhas, dançando a meia légua de distância do par, hoje usam o cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado tango-girls do Aero Blub e Natal Club. Numa viagem, em janeiro de 1928, eu mostrava a Mário de Andrade, nos arroados do Baixo-Açu, crianças com a bochechinha pintada de papel encarnado, fingindo rouge. Encontrei jornais do Rio e São Paulo em toda parte. O Sertão descaracteriza-se. É natural que o cantador vá morrendo também.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Atentada Tradução X: Cioran

Précis de la Décomposition
Annulation par la Délivrance
Une doctrine du salut n’a de sens que si nous partons de l’équation existence-souffrance. Ce n’est ni une constatation subite, ni une série de raisonnements qui nous conduisent à cette équation, mais l’élaboration inconsciente de tous nos instants, la contribution de toutes nos expériences, infimes ou capitales. Quand nous portons des germes de déceptions et comme une soif de les voir éclore, le désir que le monde infirme à chaque pas nos espoirs multiplie les vérifications voluptueuses du mal. Les arguments viennent ensuite ; la doctrine se construit : il ne reste encore que le danger de la « sagesse ». Mais, si l’on ne veut pas s’affranchir de la souffrance ni vaincre les contradictions et les conflits, si on préfère les nuances de l’inachevé et les dialectiques affectives à l’uni d’une impasse sublime ? Le salut finit tout ; et il nous finit. Qui, une fois sauvé, ose se dire encore vivant ? On ne vit réellement que par le refus de se délivrer de la souffrance et comme par une tentation religieuse de l’irréligiosité. Le salut ne hante que les assassins et les saints, ceux qui ont tué ou dépassé la créature ; les autres se vautrent – ivres morts – dans l’imperfection…
Le tort de toute doctrine de la délivrance est de supprimer la poésie, climat de l’inachevé. Le poète se trahirait s’il aspirait à se sauver : le salut est la mort du chant, la négation de l’art et de l’esprit. Comment se sentir solidaire d’un aboutissement ? Nous pouvons raffiner, jardiner nos douleurs, mais par quel moyen nous en émanciper sans nous suspendre ? Dociles à la malédiction, nous n’existons qu’en tant que nous souffrons. – Une âme ne s’agrandit et ne périt que par la quantité d’insupportable qu’elle assume.
Breviário da Decomposição
Anulação pela Libertação
Uma doutrina da salvação só tem sentido se partimos da equação existência-sofrimento. Não é nem uma constatação súbita, nem uma série de raciocínios que nos conduzem a essa equação, mas a elaboração inconsciente de todos os nossos instantes, a contribuição de todas as nossas experiências, ínfimas ou capitais. Quando possuímos os germens de decepções e como uma sede de vê-los eclodir, o desejo de que o mundo diminua a cada passo nossas esperanças multiplica as verificações voluptuosas do mal. Os argumentos vêm em seguida; a doutrina se constrói: resta ainda apenas o perigo da “sabedoria”. Mas e se não queremos libertar-nos do sofrimento nem vencer as contradições e os conflitos, se preferimos as nuances do inacabado e as dialéticas afetivas à união de um impasse sublime? A salvação acaba com tudo; ela acaba conosco. Quem, uma vez salvo, ousa ainda se dizer vivo? Só se vive realmente pela recusa de se libertar do sofrimento e como que por uma tentação religiosa da irreligiosidade. A salvação não persegue senão os assassinos e os santos, aqueles que mataram ou ultrapassaram a criatura; os outros tombam – mortos ébrios – na imperfeição...
O erro de toda a doutrina da libertação é suprimir a poesia, morada do inacabado. O poeta se trairia se aspirasse a se salvar: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito. Como se sentir solidário de um término? Nós podemos refinar, cultivar nossas dores, mas por que meio delas nos emancipar sem nos suprimir? Inclinados à maledicência, existimos somente enquanto sofremos. – Uma alma não se engrandece e não perece senão pela quantidade de insuportável que ela assume.

sábado, 11 de junho de 2011

A velha bate à porta

A velha bate à porta
para abrir-nos a via estreita,
escorreita ela se desforra
do riso, do beijo, da não-maleita.
Sua força, ás franzino,
vem do toque eterno da morte,
dela mesma, anciã menina,
velha-jovem que se renova
na súbita e esperada batida
não do peito, mas à porta
que a alguns alucina
e muito não demora.

A porta em que ela bate
sempre esteve no trinco.
Trancá-la à chave só cabe
à sede seca – chumbinho.
Mas isso nada não é
senão abri-la sozinho,
abri-la por dentro e de chofre
no desespero menino
que não joga o jogo da sorte
que cospe o sublime acepipe:
a vida, os inúteis caminhos.

(Maior iguaria não há,
nem menor não existe,
mas desfrutá-la só faz
quem ao tempo resiste
andando por vias errantes
antes da sabida visita.)

E não há vingança envolvida
em todo o macabro processo.
E nem há processo macabro
na mão a bater à porta
na vida a que se dá cabo.
Quando a velha vai à forra,
não se vinga, se completa
o tempo que já não sobra,
ninguém mais anda, nem erra:
é o segundo em que se acorda
ou o que em paz se dorme,
é o tempo sem vagueza
que não brinca, não faz hora
marca o passo, acaba o ciclo,
acerta a hora das horas.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Contra a revolução

Para o Carlão,
na medida do possível
Talvez não haja algo mais démodé do que a idéia de revolução. Imaginar que ocorra alguma, como a Russa ou a Cubana, é atualmente algo muito difícil, embora continuemos a viver num mundo injusto. A razão parece-me bem simples: a maior parte de nós está interessada apenas em garantir “o seu” e, no máximo, “o nosso”, quando este nos reserva um bom quinhão.

Confesso, contudo, que a inviabilidade de uma revolução, capitaneada por um líder ou pequeno grupo, sequer me comove. Não acredito nela e, na verdade, mesmo que ocorra, penso que está fadada ao insucesso. Temos de mudar a nós mesmos antes de mudarmos as estruturas, porque, se for para permanecermos como somos, com os mesmos insaciáveis desejos, os mesmos impulsos tolos, as opiniões de sempre, de que adianta estabelecer o novo se continuaremos velhos? Aliás, a sociabilidade com que sonhamos não poderá jamais se manter a menos que nós – e não um poder, um estado, um governo – sejamos seu esteio. Enquanto acalentarmos os valores e práticas que conformam o modus vivendi atual, nenhuma esperança é possível.

Por causa disso, e me perdoem os utópicos de 1917 e 1959, creio que devemos dar cabo das abstrações e lançarmos nossos olhos para o concreto. Que tal, em lugar de falarmos em “pobres”, falarmos nos mendigos que saltamos nas ruas de nossas cidades, nos famintos que batem à nossa porta? Que tal, ao invés de acusarmos a “elite”, acusarmos a nós mesmos, que faríamos o mesmo se invertêssemos as posições? Que tal, pois, sermos como as mulheres, que não parem a “humanidade”, mas dão luz a “marias e josés”?

A revolução é, antes de tudo, uma auto-transformação e o melhor modo de iniciá-la é começar a sermos o que ainda não somos. Muito, muito antes da guerra ou da manifestação, do slogan ou do grito, penso que é o caso de nos voltarmos para o cotidiano e suas miudezas, materializando silenciosamente os ideais que nunca pisaram o chão e de que nunca, a rigor, fomos dignos. Só há uma política de fato revolucionária: a política dos pequenos gestos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Do doce vinagre

A recente beatificação do Papa João Paulo II fez com que eu me atentasse para algo que nunca havia notado. Não, não me refiro à incompreensível distinção entre santo e beato, mas a algo mais prosaico: às sessões de milagres de algumas igrejas evangélicas (milagre com dia e hora marcados?) e a profusão de milagres nessas mesmas sessões (milagres contados às dezenas?). ‘Milagre’ se tornou um termo corriqueiro, repetido à exaustão. De tão falado, aliás, parece até natural, fenômeno cotidiano. Será que não é o caso de reabilitarmos o advogado do diabo?

Seja como for, acredito que, para além do campo religioso, estamos eivados de algo que poderíamos chamar de “lógica do milagre” e que somos muito simpáticos a ela. É que, várias vezes, aspiramos a soluções fáceis e súbitas de nossos problemas, como se fosse possível nos livrarmos das pedras de nossos sapatos por um passe de mágica. Acho que essa é uma boa perspectiva para pensar a loteria, as cirurgias plásticas e muitas outras coisas: de repente, como que por um milagre profano, mudamos de vida, de corpo... E sem nenhum esforço, sem ter de trabalhar, sem ter de fazer dieta, sem ter de comer o pão que o diabo amassou!

O lamentável dessa lógica é que nos colocamos numa posição completamente passiva. Resignados ou desesperados, ficamos postados à espera de um redentor (um mestre, um deus, um curandeiro, a sorte) e sonhamos com a resolução repentina de nossos males, antevendo o gosto do vinho sem notar que a água avinagre-se.

domingo, 8 de maio de 2011

Última Liberdade

É difícil defender, / só com palavras, a vida
ainda mais quando ela é / esta que vê, severina.
JCMN – Morte e Vida Severina
Seria falso dizer que não imaginava que pudesse acontecer. No entanto, isso não significa que não tenha ficado surpreso com a notícia do suicídio de uma colega com quem convivi alguns anos durante minha graduação. Fomos bolsistas de um mesmo programa de pesquisa e, sabendo agora que ela se enforcou, constato que aquilo que sempre se lhe apresentara como uma alternativa acabou tornando-se objeto de escolha.

Confesso que fiquei abalado a tal ponto que optei por não ir ao velório e enterro. Mais do que nunca, talvez por ter acometido uma pessoa relativamente próxima, talvez por ter sido realizado de modo brutal e premeditado, o suicídio calou fundo em mim. Sabemos agora que um enorme sofrimento a remoía interiormente, sofrimento que encontrou expressão na morte voluntária. Agora, porém, é tarde demais.

Não há como explicar o pensamento suicida quando ele se constrói no mais absoluto silêncio e em contraste com condições objetivas que parecem alicerçar uma vida em tranqüilo progresso: formatura, emprego, casa própria, carro novo, casamento. No entanto, pergunto-me se há meios de evitar o suicídio, se há algum argumento capaz de demover quem se encontra na fronteira final.

Avento, inicialmente, o sofrimento que se causará a outros, mas isso me parece insuficiente: o cálculo é óbvio quando a dor que carregamos no peito se torna insuportável. Cogito, em segundo lugar, o argumento do futuro: se sofremos no presente, se temos sofrido há muito, nada impede que nossa vida se torne melhor e que, a partir de um futuro mais ou menos breve, tenhamos dias agradáveis e felizes. Contudo, quando a dor é lancinante, é possível nos apoiarmos num olhar prospectivo? Por fim, interrogo-me sobre o desejo de perfeição tão caro a muitos de nós: frustração, fracasso, impotência, limitação, perda – até que ponto a dor, em suas mais variadas formas, não é potencializada por uma expectativa irreal acerca de nós e do mundo?

É certamente uma grande ironia o fato de que o ato de radical afirmação da liberdade corresponda à máxima negação de si mesmo, mas, frente a uma paixão incandescente, a razão tem pouco a fazer. Se um comentário me é permitido, acho que, se não atuamos dia a dia sobre nossas mazelas e domamos os monstros que nos assombram; se não aprendemos a rir das imperfeições e desfrutar de nossas migalhas; se, em suma, não cuidamos cotidianamente da tênue chama que alumia nossas vidas, corremos o risco de que ela se apague e que nada mais nos reste senão o mergulho na noite eterna.

sábado, 30 de abril de 2011

Ainda o vinho

[Do Lutgarda n.2, de meados de 2000]
Era uma vez um homem que amou desmedidamente uma mulher.
Era a mesma vez uma mulher que amou desmedidamente um homem.
Outra era a vez em que conheceram o tempo.
Outra era a mesma vez em que conheceram o medo do tempo.
Outra era ainda a mesma vez em que mediram o amor pelo tempo.
Era-se a vez em que se amaram desmedidamente.

domingo, 24 de abril de 2011

Atentada Tradução IX: Anacreonte

gerōn d’hotan khoreuē
trikhas gerōn men estin

tas de phrenas neazei
Um velho, quando dança,
permanece com cabelo envelhecido,
mas seu espírito rejuvenesce.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Duas historietas e um canto de Tagore

para os amigos que perdi
Numa rua próxima à da minha casa, morava uma benzedeira, que muitas vezes visitei na infância, quando minha mãe julgava que eu estava muito encapetado ou me machucando demais. Era uma senhora negra, que, vendo-nos cruzar o quintal, logo abria um sorriso luminoso, puxava uma cadeira de madeira para um canto sombreado e, colocando-me no colo, fazia umas rezas ao mesmo tempo em que batia na minha cabeça folhas de sei-lá-o-quê.

Anos depois, já crescido, resolvi revê-la. A casa ainda existia, embora sufocada por prédios enormes feitos ao seu redor. Toquei o interfone e veio uma mulher, talvez nos seus quarenta anos, possivelmente sua filha ou nora. “Aqui ainda mora uma senhora que benze?” “Sim, mas ela não benze mais.” “O que houve? Ela não está bem de saúde?” “Não, virou evangélica.”

* * *
Não fosse um grande acaso, acho que não teria sido convidado para o casamento de um amigo. Certamente ele ainda se lembrava de mim e das várias coisas que fizemos juntos, mas o envolvimento com a yoga, que começara a praticar alguns anos antes, havia a tal ponto crescido que qualquer coisa não pertencente a esse universo estava sendo deixada de lado. No dia do casório, essa impressão se confirmou: afora a família e uns raros velhos amigos, todos os presentes na cerimônia sentavam-se em lótus e portavam um turbante branco.

Confesso que fiquei deveras surpreso com isso, porque tinha dificuldade em imaginar que meu amigo e sua esposa, sempre tão abertos ao mundo, à variedade de experiências que a vida oferece, pudessem ter mergulhado no sadhana em detrimento de tudo o mais. Com certo tom de lamento, saí da celebração meditando algumas questões que permanecem comigo, pois não nos encontramos novamente: por que as trilhas espirituais são tão exclusivistas? Até o amor e a amizade precisam ser submetidos ao crivo da crença?
* * *
Rabindranath Tagore – Gitanjali – 8º Canto
“A criança que está coberta com um robe de príncipe e tem colares de jóias ao redor do pescoço perde todo prazer em sua brincadeira; seu traje refreia-a a cada passo.
Com medo de que se desfie ou se desgaste com poeira, ela se afasta do mundo e tem medo até de mover-se.
Mãe, não há ganho algum nesta sujeição ao luxo, se ela lhe veda o contato com a saudável poeira da terra, se lhe retira o direito de entrada na grande festa da vida humana comum.”

quarta-feira, 30 de março de 2011

Francotônica II: Dos Mundos

O Pequeno Príncipe não é só um livro de misse. É cartão-postal, ímã de geladeira, estampa de camisa e, agora também, DVD. Foi o que descobri outro dia, sentando-me junto a duas crianças na casa de uma amiga. Eram seus filhos, de três e seis anos, que estavam quietos no quarto de brinquedos, onde se isolavam do convívio dos adultos reunidos para um jantar. O filme a que assistiam, uma adaptação livre de Saint-Exupéry, era feito de animações e parecia bem legal, a julgar pelos olhos vidrados.
Mais tarde, soube que os meninos já o haviam assistido várias vezes. É curioso como as crianças não se entediam, mesmo fazendo reiteradamente a mesma coisa. Terminado o filme, a dupla resolveu brincar: um seria o pequeno príncipe; o outro, a raposa; e o colchão em que um casal de visitas dormiria ficou como cenário, enriquecido que foi com bonecos e caixas.
É claro que toda a ornamentação era muito precária, mas os objetos eram apenas ensejo para a imaginação, balizas para definir o campo das aventuras a vivenciar. O fundamental os meninos traziam em si: a capacidade de inventar, de se entregar ao jogo e, terminada a brincadeira, de dele sair. Qualquer criança sabe separar muito bem os dois mundos, a despeito do mergulho profundo no da imaginação.
Já nós, adultos, estamos sempre a misturar as estações. Durante a maior parte do tempo, assumimos personagens mais ou menos fictícios e, levando-nos demasiadamente a sério, esquecemos que “coerência”, “prioridades”, “reconhecimento” (e outras tantas fantasias capciosas) são nada mais que peças da brincadeira chamada maturidade. Que desatino! Precisamos urgentemente readquirir o espírito da infância e a argúcia para reencontrarmo-nos a nós mesmos, pois talvez ainda nos seja possível rever as coisas sem o manto com que as cobrimos, nos desvencilhar de nossas projeções e voltar ao mundo real, o B-612.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Com choro e com vela

Lembro-me como se fosse hoje do dia em que uma amiga me falou das carpideiras. Nunca ouvira falar na palavra e sequer imaginava que pudesse haver pessoas que fossem pagas para chorar por outras. Enterro, velório, mas também casamento e despedida, qualquer ocasião é ocasião para elas, desde que lágrimas sejam precisas. Interessante que o substantivo só exista no feminino: carpideiras são mulheres, mulheres que choram.

Num primeiro momento, fiquei muito surpreso e achei um absurdo. “Pagar alguém para chorar no seu lugar? Ou para impressionar terceiros?” Cheguei a supor que era invencionice contemporânea, mas a prática é antiga. Hoje, lendo uma biografia de Marco Polo, me dei conta de que existia numa cidade portuária do golfo pérsico no século XIII, quando se deram as andanças do veneziano: viúvas muçulmanas, que tinham de chorar a morte do falecido durante quatro anos consecutivos, todos os dias do ano, podiam, quando cansadas, recorrer a esse auxílio profissional.

Confesso que gostaria de entender a profissão, conversar com uma dessas senhoras, saber das histórias de lágrimas de crocodilo. Que significado dão à sua tarefa? Quem as contrata? Quanto custa a hora de choro? E, além disso, quando surgiu a prática de carpir? Onde? Como? Por que? Convenhamos: as carpideiras são intrigantes e uma alternativa curiosa para quem se cansou de chorar, já que não dá para delegar a tristeza, felizmente.

domingo, 13 de março de 2011

Francotônica I: E somos todos tibetanos

Nas andanças da vida, por um golpe de sorte acabei fazendo duas novas amizades. Estava numa conferência, sentado ao fundo de uma velha capela do século XVII, quando um chinês e uma senhora francesa sentaram-se ao meu lado. Por terem chegado um pouco atrasados, acabaram por me consultar acerca do que se passava e essa pequena consulta deu ensejo, na recepção que se seguiu à palestra, a uma conversa calorosa e gentil. Como resultado, fui convidado para um jantar na casa da Madame Villard algumas semanas depois, para o qual Qinghua e eu fomos juntos, já que tomaríamos o mesmo metrô.

A noite foi muito agradável e a conversa, como sempre nos jantares franceses, foi tão longa e variada como a refeição. Um casal de vizinhos da Mme Villard também estava presente e levou consigo seus dois filhos, um ainda adolescente. Marcou-me o quanto todos foram simpáticos e, mais do isso, a gratuidade da gentileza. Que bom que eu, num primeiro momento hesitante, finalmente aceitei o convite.

Daquela noite, porém, destaco um registro especial. É que em determinado momento a conversa passou a tratar da China, migrou para Macau e depois chegou ao Tibet. Qinghua nos contou, da perspectiva que lhe é própria, que os tibetanos aceitam a presença chinesa, pois é ela que assegura o desenvolvimento e “as pessoas querem ter coisas, querem o progresso”. A seus olhos, tudo se passa como se a resistência do Dalai Lama fosse uma exceção, já que o povo habituou-se ao domínio chinês (truculento que seja, acrescento eu) e está mais interessado no avanço material do que na liberdade.

Não emiti comentário algum quando estávamos à mesa, mas confesso que fiquei um tanto triste. Não me refiro à opressão política e ao dirigismo estatal, que me interessam menos do que a uniformização do sentido que damos às nossas vidas: também os tibetanos desejam o progresso, o conforto material... Considero que, mais que a tirania, mais que a violência ou a imposição do silêncio, o pior massacre que vemos na contemporaneidade (e que assola todos os povos) é o massacre do desejo, tolhido pela ilusão do consumo e planificado basicamente nos mesmos objetos. Acho impossível que sejamos felizes centrando-nos apenas nisso e, dada a perda de nossas identidades e diferenças, lamento que caminhemos para um nivelamento amorfo e global, lamento que caminhemos para nos tornar todos tibetanos, isto é, franceses, isto é, turcos, isto é, bolivianos, isto é, senegaleses, isto é, sauditas, isto é, filipinos, isto é, estadunidenses, isto é, zés-ninguéns.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

- Nota -

Caros amigos e amigas que acompanham o Armadura de Vento,

escrevo para lhes dizer que devo passar um período sem fazer postagens. Não pretendo abandonar o blog, apenas fazer uma pausa, constrangido que estou por um momento de trabalho intenso, que se estenderá até meados de março. Mais do que nos últimos meses, sinto-me inapto para desatrelar-me da opressão dos afazeres e, assim, não consigo obter o ar necessário para alentar o espírito e a escrita.

Sei que alguns de vocês, pessoas conhecidas e desconhecidas, sentirão falta de vir até aqui para ler as postagens e, vez ou outra, comentá-las. No entanto, saibam que falta maior sentirei eu, donde meu sincero desejo de poder voltar à palavra assim que possível.

Com um forte e já saudoso abraço,
M.C.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pedido de Natal

Senhor,
escrevo para fazer um pedido, mas, antes de tudo, sinto que devo me desculpar. Como as pessoas estão especialmente voltadas para o Papai Noel, imagino que esta noite te seja tranqüila e que um pedido de última hora só pode perturbar. Sei que causo incômodo por não me comportar como os outros, por não substituir tua imagem pela do velho barbudo de vermelho e renas, por não comprar nenhum presente, por não admirar as árvores com bolinhas. Peço desculpas, pois, por tantos nãos e pela minha estranheza.
Acredito que saiba que nunca fui de religião, embora busque encontrar na escuridão do dia-a-dia um sentido que aplaque o sentimento de absurdo que, com tanta freqüência, o senhor deixa espocar no meu peito. Confesso que, vez ou outra, penso-te como deus absconditus na tentativa de te salvar da descrença, mas a verdade é que minha busca por ti tem vacilado. Tua face ainda me é desconhecida e tua presença só se manifesta como falta e ferida.
As orações tradicionais, já não consigo rezá-las. Compreendo as palavras, mas elas me dizem pouco, não tocam minha alma, são só palavras. Por causa disso, senhor, rogo a ti um pedido, eu que, como tantos outros, ando tão enfeitiçado pelas urgências do cotidiano, tão acomodado com uma vida morna; eu que, como tantos outros, mal alço os olhos para ver o horizonte. Por favor, tenho pouco a dizer, mas acata-o, reconhece o grito neste sussurro:
Senhor, se tu és o sentido da dor, a chave do mistério que nos assola, dá-me a fome, Senhor, dá-me a sede e o ardor, mergulha-me no gelo e no fogo, traze a faca e o espinho, abrasa meu corpo, mas abre meus olhos para beleza.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Zoológico XXI

Quando ainda adolescente, fiz uma viagem para o norte de Minas. Visitei uma pequena comunidade chamada Tanque, que mal totalizava duas dezenas de famílias. Era, se me lembro bem, um distrito de Porteirinha e, na ausência de hotel ou pousada, um casal com três filhos hospedou-me em sua casa.

Dentre muitas coisas que me marcaram, cito um episódio. O caçula da família que me recebeu, chamado Lázaro, ficava sempre a meu lado, como que tomando conta de mim, a ponto tal que resolvi lhe pedir um favor: indicar-me tudo que achava que eu não conhecia, sobretudo plantas, frutas e animais. Tive, como conseqüência, dias maravilhosos incrustados com pequenas descobertas. Numa determinada tarde, ele me pediu silêncio e indicou uma trilha. Segui-o calado até que apontou: um gato! Caí na gargalhada: “Uai, ocê tá achando qu’eu não conheço gato?! Gat’eu conheço! Eu sou da cidade, mas alguns bichos eu já vi.”

Pois outro dia soube de uma notícia ótima. Um zoológico da Alemanha resolveu colocar vaca em exposição. Tomei um grande susto, mas depois me recompus, tendo recordado minha viagem a Tanque. Não há que surpreender a decisão dos administradores daquele zôo. Cada vez mais distanciados de experiências diretas com a natureza, estamos perdendo o contato mesmo com animais relativamente comuns, para não falar em outras perdas, talvez mais relevantes, causadas pela nossa vida urbana, demasiado urbana.

Comentando a notícia entre colegas, escutei histórias de amigos professores e descobri que há crianças que nunca viram galinha, que pensam que frango nasce no freezer, que não imaginam como é um porco e que sentem nojo de leite ao saber que saiu de uma teta. Todas crianças brasileiras, para as quais documentários à la Discovery ou viagens a praias bem administradas esgota o contato com o mundo, por assim dizer, selvagem. Crianças brasileiras, como alemãs, inglesas, francesas – como qualquer criança citadina?

A continuar assim, os netos do Lázaro terão muito mais trabalho do que aquele que lhe dei, se é que nós ainda cogitaremos nadar em rios (e não em piscinas cloradas), sujar os pés com terra (e não o sapato com pó asfáltico), colher frutas no pé (e não em prateleiras), olhar montanhas (e não fachadas de prédio), sentir o vento (e não o ar-condicionado), se é que nós, afinal de contas, ainda seremos humanos (e não apenas bichos urbanos).